quinta-feira, março 23, 2006

Buffo, Reynaldo e as flores do jardim da nossa casa


Em primeiro plano,Thadeu (de bigodes) e José Buffo.

Este post é um fruto de outro, mais abaixo, sobre a passagem do Reynaldo Jardim e a interferência dele na cultura de Curitiba. O Beto Trindade, lá de Londres, deu o seu recado. Agora, o José Buffo chega para botar fogo na cinza e avivar a memória de uma cidade que, quase sempre, sente-se melhor representada pela estética dos seus prédios e obras públicas do que pelo que tem sangue, anda, respira – e precisa comer de vez em quando. Quando o Jardim chegou por aqui, era pior. E o Buffo – que conheci em 1977, quando estudava no Colégio Estadual e ele morava do outro lado da rua, na Casa do Estudante – estava no olho do furacão. Lembro que o Buffo, em célebre reunião de intelectuais no teatro Paiol (leia nos posts), roubou a palavra quando falavam de poesia concreta, dizendo: “ – Quem entende de poesia concreta é o Rafael Greca.” Para quem não sabe, Rafael Greca, além de nome de um futuro prefeito de Curitiba, denominava também uma famosa construtora e fornecedora de concreto para obras.

Produtores culturais: leiam com atenção que do texto do Buffo já surgem, no mínimo, três idéias: 1) fazer uma edição especial com o melhor do Pólo Cultural (nome criado por Gláuber Rocha, definindo a Curitiba daquela época de algazarra criativa); 2) fazer um documentário com o que ficou gravado em filme e vídeo; 3) fazer uma mostra com os curtas produzidos na época. Quem sabe juntar tudo isso num evento e convidar gente de todo o Brasil para a festança.
Para conhecer melhor o Buffo, dois exemplos. Leia o poema abaixo e procure ouvir a genial canção Valsa Danada, parceria Buffo/Renato Quege, maravilhosamente gravada pelo Beijo aa Força no CD Sem suíngue.


frevo frenético

faça disso um forte abraço
me ame goze faça estardalhaço
faça disso um forte apache
me deixe doce me chupe feito sorvete pistache
na pele do bicho, na pele do sol
na pele da anta, na pele do gol
na pele da pele na pele do mato é apelido
carrapato escalpelado, carrapato escapulindo
pelado chupando tudo feito um sorvete
melado melando melindo

(José Buffo)


Reynaldo Jardim por José Buffo

Beco, querido. Isso tudo meu deu foi saudade. O Jardim, ou o Garden como a gente chamava, chegou e botou fogo no circo. Ele tinha um slogan próprio: "nascido em São Paulo, vivido no Rio, morrido em Curitiba". Ele achava isso aqui um cemitério, mas, como em todo cemitério, também pode brotar ervas daninhas. Foi o que ele fez.

Tento puxar pelo fio da memória coisas que ele facilitou e portas que ele abriu pra turma toda entrar e aprontar. Com o Pólo Cultural ele fez uma revolução de alto nível, até hoje um jornal sem igual no país. Com o Correio de Notícias (só a turma da madruga, do past up, já era um a loucura. Novo jornalismo todo dia no ar. Poesia pura em forma de notícias) ele fez a alegria das bancas de jornais e dos leitores que buscavam nos jornais mais que o rame-rame do noticiário esdrúxulo do dia a dia.

Aquela do Paiol, lembro-me muito bem, estava lá. Acho até, se deus quiser, tenho um cassete gravado com o papo todo que rolou por lá. Acho, só acho. Mas foi no apoio a toda rapaziada que o Garden de fato marcou. Ele era um lord. A Anarte fazia parte da Feira Nacional do Humor, que acontecia num circo ali no largo. Já foi dito ai. Ele ganhou para divulgar o evento vários cartazes de rua, out door. E o que fez? Chamou a rapaziada para pintar, um a um. Uma diversão e tanto. A Ferrofonia, maestrada pelo Luis Cláudio, acabou em pancadaria, para não dizer outra coisa, quando quebraram o arco do violãocelo do maestro. E todo mundo achava que fazia parte do espetáculo, afinal, uma porrada mais ou a menos tanto fazia. E o circo estava cheia de autoridades civis, militares eclesiásticas e...

Quem filmou tudo isso foi o Peter, em 16 mm, alguém deve ter esse filme. No MIS, então, ele foi muito generoso. Todos os filmes super 8 que fiz (nossos, foram 4: Um lance de dedos; Brasil - ou vai ou rocha ; Jovina, a menina da Vila Nori e João Passamão; e um clássico do cinema udigrudi, com câmara do Tupã (em relação ao dono do cu há controvérsias), que foi o... bem não me lembro do nome, minha flor. Enfim, o Garden foi a nossa Embrafilme, entre outras coisas, garantindo filmes, revelações, montagens, tudo no MIS. Os filmes viraram bolsa de jacaré em algum lugar.



No Rio, em outro agito. Da esquerda para a direita: Ferreira Gullar, Lygia Pape, Theon Spanúdis, Lygia Clark e Reynaldo Jardim, os “neoconcretos”, em 1959.


Mas o Garden não parava. Estava sempre pronto a editar um livro, publicar um poema, armar um evento.
Embalados por uma ideologia dos situacionistas, a idéia era armar e aprontar alguma de maneira rápida em algum lugar, qualquer lugar. Uma delas virou matéria de capa inteira do Jornal do Brasil, da lavra do nosso Beraldo. Um luxo para nós. A Arte Não Vale um Gato Morto, como citou o Trindade, fazia parte da divulgação da Anarte, e houve mesmo um desfile de caixão pela cidade, com entrega de panfletos e tudo mais. Aliás, nossa apresentação no circo, começou assim: o féretro chegando e lá de dentro saindo alguém. Claro que era difícil do cara sair, pois o defunto estava sempre muito bêbado.
Mas nesse auê todo aí teve um auezinho anterior que foi a única e exclusiva apresentação da Banda Bandida no TUC, uma banda aberta, gente que ia sendo catada na rua, clarinetista de banda militar, Didi no bongô, Luís Cláudio no arranjo, Marcos Prado na percussão, Rodrigão, Renato, Sérgio, sei lá mais quem, um monte de gente, cada um com seu instrumento, neguinho tocando piano, e a platéia cheia, urrando, foram umas 4 horas de show, sem parar, sem ensaio, sem estrutura, apenas tocando e falando e cantando e tudo isso foi gravado naqueles gravadores de rolo, DEVE ESTAR NO Museu da Imagem e do Som, se é que alguém sabe disso. Bem, a banda ou o bando durou só essa apresentação. Foi o máximo. O sucesso de um show só. Ah, talvez tenha me equivocado nos nomes, mas o que importa é que não sonhei. Estavam todo lá. Todos mesmo.

Onde o Garden entra nessa? Ah, sei lá. O Garden apoiava tudo. Tem outras coisas que puxando pela memória vai saindo. Bem, querido Beco. Qualquer coisa a gente vai se falando. Acho que fazer algo pela passagem do Jardim aqui pela plagas curitibana é mesmo muito legal e merecedor.

terça-feira, março 21, 2006

Bom humor, malícia e precisão


Desde bem pequeno eu já desconfiava que não tinha vindo ao mundo a passeio. Não que tenha sido geneticamente programado para ser desgracido, como bem disseram o Marcos Prado e o Sérgio Viralobos num célebre poema. Nada disso. É que as coisas teimam em acontecer. E quando as coisas acontecem, as coisas de verdade, as tais coisas da vida, elas não costumam mandar convite com hora, data e local. No meio do tiroteio, fui fazendo opções que, coincidência ou não, me afastavam de uma vida tranqüila e sem grandes problemas. Simplesmente não consigo fingir que não é comigo, mudar de calçada e seguir em frente. Arrumo para a cabecinha. Portanto, não posso reclamar. Confesso que procurei: sarna pra coçar, chifre em cavalo, cabelo em ovo - e, muitas vezes, achei. Fazer o que? Me ensinaram que a gente não aprende as coisas apenas para enfeite, mas para, na hora do vamos ver, ter coragem para encarar a massa ensandecida - com bom humor, malícia e precisão, é claro. Cheguei até aqui bem inteirinho, levando em conta o tamanho da desgrama. Talvez porque, de vez em sempre, eu lembro de coisas como este poema do mineiro Affonso Ávila:


quem obedece a sinalização evita acidentes

dentro da faixa
fora do perigo
dentro da fauna
fora do perigo
dentro da farsa
fora do perigo
dentro do falso
fora do perigo
dentro do fácil
fora do perigo

(Poema de Affonso Ávila, do livro Código Nacional de Trânsito)