quinta-feira, abril 08, 2010

O inconsistente dom da profecia

Sérgio Viralobos (Foto de Renato Quege, que captou o momento exato em que baixava uma nova profecia).

Na verdade não é frescura aquela dito de que poeta é "antena da raça" e coisa e tal. Acontece, mesmo. Porém, desgraçadamente, sem que o desgraçado do poeta tenha o mínimo controle do processo, como bem observou Sócrates, o craque dos filósofos, em uma de suas sovas bem dadas.

Entre estes receptores de mensagens futuras, a maioria não vai além de bombril na antena de TV - e já está mil de bom. Conseguindo isso, o sujeito já tem direito a virar cambota de felicidade. Outros porém passam da conta e, destes, destaco o meu amigo Sérgio Viralobos, em cujas obras venho percebendo, em décadas de amorosa observação, uma série de legítimas profecias. Não sei por que e nem de onde, mas em seus versos existem diversas antecipações de fatos, acontecimentos, fenômenos, tendências.

Para mostrar a vocês tudo que vi, precisaria escrever um livro sobre o assunto (um tijolaço, inclusive), coisa que só poderei fazer após profetizar as seis dezenas da loto ou depois de morto - com a ajuda de um bom médium. Mas, o que os tempos permitirem, vou postando por aqui. Uma dessas, que destaco apenas para fazer eco aos noticiosos, foi profecia escrita em um tempo que efeito estufa era conhecido apenas pelos especialistas em amadurar banana. O poema a seguir é de Sérgio Viralobos, com a luxuosa parceria de Thadeu Wojciechowski e Marcos Prado.




INCONSISTÊNCIA

"Chove dentro da alta fantasia."
Dante Alighieri


Um temporal desaba sobre a garoa fina
A Terra vira aquela água
Tudo se desmilingüindo
O mar, entre os rios, afluindo

A Torre de Pisa escorrega sobre a Capela Sistina

Um alpinista se afoga no Aconcágua
Por baixo do Canal da Mancha, escafandristas não vêem a luz do fim do túnel
Toda a engenharia do Japão em vão: maremoto, não terremoto
A Estátua da Liberdade bóia no Planeta dos Macacos
No Rio de Janeiro, nivelados por baixo flats e barracos
Cumpre-se a profecia do Anjo Exterminador de Buñuel
Vista assim do alto, a Terra azul fica feia na foto

(Sérgio Viralobos, Antonio Thadeu Wojciechowski e Marcos Prado)

domingo, abril 04, 2010

Existe vida além das tumbas



Walmor, Fernando, Arnaldo, Rodrigo, Almeidossauro e Flávio: alta concentração de talento por metro quadrado de palco. Foto de Maringas Maciel.


Ontem eu convoquei meus guarda-costas, saí das catacumbas e fui ao TUC (que aliás, também fica em um subterrâneo). Lá, dois grandes espetáculos esperavam minhas vistas tão fatigadas. Primeiro. O show dos Eles Mesmos. Vou tentar resumir a experiência.


A primeira sensação é de que não é possível sair tanto som de apenas três caras. A banda mescla música mexicana, punk, rock-a-billy e mais as coisas que eles extraem lá da cabeça deles mesmo (especialmente estas). O vocalista Fernando Gouvêa tem um vozeirão daqueles do tempo em que se cantava sem microfone (Vicente Celestino, Francisco Alves). E não economiza voz. E não sonega sentimento. Além disso, como todo guitarrista de power trio, tem que desdobrar em um halterofilismo instrumental para manter a casa de pé. O baixista dos Eles Mesmos é um caso à parte. Valter Ferraz alterna e mistura todas as técnicas em um instrumento sem trastes (segundo ele mesmo, o único traste daquele baixo é quem o toca, rererer). O baterista Vinícius Marçal parece ligado na tomada, é só a banda fazer clic! que ele sai detonando sem nem ao menos desmanchar o penteado (opa, o cara tem cabelo raspado, mas vale a imagem).

Letras bacanas, interpretadas com muito sangre latino. Gostei bastante da “Decida” e ainda trago na cabeça os ecos do “Serial Killer do Amor”. Òbvio que fiquei embasbacado, também, com a versão dos Eles Mesmo para o clássico Boemia... Valeu, rapaziada.

Esperando o segundo tempo, fiquei a matutar o que nos aguardava, já que no palco se reuniriam nada mais nada menos que uma mistura do sempre chique Rodrigo Barros, voando baixo, o Walmor Góes, indiscritível guitarrista e o vocal do sempre surpreendente Arnaldo Machado. O nome da tropa? Paz de Usinas.

Pois não é que os caras tiveram a ousadia de tocar sobre uma complicada base eletrônica pré-gravada? Correndo este risco e enfrentando a inexorável exatidão das batidas eletrônicas, debulharam uma série de canções (dá pra chamar assim?) nascidas da extrema invenção, com letras de uma poesia lancinantemente emocionante e uma execução muito além da burocracia.


O Arnaldo Machado tem uma presença de palco que impressiona. Aliás, qual será o segredo de tamanho preparo físico? Tai-chi-chuan? Chá de losna? O cara é cantor, ator, dançarino, tudo na mesma cena. É a palavra e o gesto in concert. O Walmor, como sempre, esmerilhou. O Rodrigo, que valeria só pela presença, charme e elegância, mostrou que não era apenas um baixista improvisado no começo da sua carreira, enfrentando ali, ao vivo, uma série de difíceis desafios harmônicos.

Legal saber que tem gente na cidade disposta arriscar as reputações (e as correspondentes famas de mau) para enfrentar com tamanha coragem o desconhecido. Ah , não dá para esquecer que em um dos mais impressionantes momentos do espetáculo, o Paz de Usinas contou com o auxílio luxuoso nos vocais do incrível Almeidossauro, do visceral Flávio Jacobsen e do Fernando Gouvea, the voice.

Na sequência, conforme o programa, eles cantariam The Clash acústico. Mas acho que não deu tempo. Mas, tudo bem, quem precisa disso. Ora, o The Clash... o The Clash que se... Espero, rezo e torço para que o trabalho destes dois trios continue. E que façam muitos shows. Aí até eu, que sou eu, vou acabar saindo da tumba.


(Roberto Prado)