quarta-feira, julho 26, 2006

Dando nome aos bois

Aí vai um texto meu que saiu no número 45 da revista Idéias.

As desventuras de Boi Barroso, Boi Pitanga e Boi da Cara Preta na terra das palavras mutantes.

Palavra de escoteiro que está nas sagradas escrituras que no início era o Verbo e o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus. Escavando direitinho, encontraremos no passado imemorial de todas as culturas essa mania humana de apresentar como simultâneos os atos de criar a manada e dar nome aos bois.

Até aqui chegamos. E vamos acrescentar, de passagem, como quem não quer nada, que esse ato fundador, esse compartilhar de palavras sentidas e significadas, essa divisão coletiva do mundo simbólico, representa o nosso despertar para o reconhecimento daquilo que mais se aproxima do que gostamos de chamar de “humanidade”.

É por isso que, talvez, a maior insurgência contra a porção gente da civilização seja chamar as coisas de coisas, trens, trecos, negócios ou menos que isso. E proceder assim de caso pensado, não sob o efeito de uma paulada na cabeça, um derrame cerebral ou por ter adquirido o hábito de dar milho a bicicleta, mas reescrever os dicionários, deliberadamente, como acontece hoje no país das palavras mutantes. Famosos artistas, piedosos bispos, políticos de nomeada, empresários de renome e cientistas de escol descobriram esse filão e o exploram sem dó, com tamanha fúria fratricida que o idioma luso corre o risco de voltar ao pó que era antes de emergir das trevas. Não sem antes cumprir toda a sentença, passando de língua que mamãe ensinou para um pavoroso grude de verbos gosmentos, sujeitos molengas, predicados escorregadios e objetos inexistentes.

Palavra de honra que agora vou explicar melhor. Se dar nome aos bois é um ato fundador, essa mesma capacidade de criação foi transformada num poder semelhante, mas exercido às avessas, da luz para a escuridão, com o objetivo de subtrair o nome das coisas e confundir uma coisa com outra, para que tudo fique a mesma coisa, só que sem coração e sem memória. Que pátria amada salve salve resiste a esta dança alucinada de palavras que começam o dia sem saber exatamente o que significarão no final do expediente? Como capturar o sentido de frases corriqueiras como “o ladrão foge da polícia para não ser preso”, quando, muito melhor do que simplesmente escapar das garras da lei é mudar as definições de “ladrão”, “polícia” e “preso”? Como resistir a argumentos tão fortes e bem fundamentados como: “É, você pode até ter razão, mas essa merda dá dinheiro!” Viu? Até nome feio está valendo.

Acompanhamos, assombrados, a escalada vertiginosa dessa onda avassaladora de modernidade que nos assalta. Até mesmo a tradicional indústria da palavra falsificada, antes uma das mais prósperas da nossa economia – e com importante contribuição do Paraná, vem sendo amplamente superada pelo crescente setor do roubo de significados. Os empreendedores interessados em descolar os objetos das suas designações originais, além de incentivo fiscal e terraplenagem gratuita, têm a sua tarefa favorecida pelo momento histórico. Hoje, qualquer porcaria aspira tornar-se marca, ícone e símbolo, para depois ser preenchida pelo conceito que estiver mais à mão. E sou capaz de jurar que por este buraco de cerca passa boi sem nome, passa boiada anônima, passa quase tudo.

Você eu não sei, mas eu vou continuar chamando pelos velhos nomes os meus bons amigos Barroso, Pitanga e Da Cara Preta, enquanto corremos os quatro atrás da Vaca Mimosa, pois até quem está arriscado a ficar sem palavras precisa garantir o leite das crianças.


o que tanto você lembra?


Lembra? Claro que lembra, era aquela,
aquela, lembrou?
Ah! Não!
Vai dizer que esqueceu
justo aquela uma
que praticamente a gente morou?
Aquela uma lá, que representa o tipo
de uma estradinha,
aquela lá lá, perto do armazém da Dona Coisinha,
logo ali,
que antes parecia tão longe.

(Roberto Prado)