domingo, maio 09, 2010

Dez bilhões de dólares pelo seu pensamento.


Mixaria atrai mixaria na razão direta da falta de massa cinzenta. Estamos aprendendo da maneira mais difícil – levando chibata no lombo – esta equação do capitalismo do Século XX, que virou lei no XXI e que colocou o pensamento definitivamente no topo da cadeia alimentar. Como já diziam os nossos antigos (que, aliás, também eram umas antas): quando a cabeça não pensa o corpo padece. E agora, infelizmente, o que restou para países com o Brasil, onde o dinheiro empaca nas mãos de uma elite de jericos, foi o dignificante papel de puxar carroças. Ou cavoucar a terra como um bando de toupeiras, envenenando os rios, detonando as florestas, inviabilizando as pequenas cidades, amontoando a população em vergonhosas malocas e tudo isso em troca do que? De mixaria.

Nós, eternamente cafetinando plantinhas indefesas?

Ora direis que plantar soja é importante e eu vos direi no entanto que nem cobrindo toda a extensão do país com dois andares de lavoura o Brasil conseguirá faturar o lucro anual de apenas uma (eu disse: uma!) empresa do EUA, a Microsof, por exemplo. Vamos pensar juntos. Há muito já se desconfiava que cultivar vegetais e fabricar objetos para vender ao estrangeiro não daria mais camisa a nenhum país que se preze. No máximo, estas atividades hoje sustentam um punhado de capatazes locais das corporações sediadas em nações capazes de produzir ideias, conceitos e marcas. Quer uma prova concreta? Basta dar uma olhada no seu extrato bancário para você se convencer, da pior forma, que todo o restante da população de países como o Brasil fica, literalmente, a ver navios: navios de minério de ferro navegando para a China e navios de grãos que, vocês sabem, vão virar ração para engordar os porcos capitalistas.

Um gigolô em cada porto.

E por falar nisso, recentemente, um dos maiores terminais exportadores do Brasil, o Porto de Paranaguá, festejou a marca de U$ 10 bilhões em movimentação de cargas, no período de um ano. Maravilha. Isso é pouco? É muito? Confesso que a minha mente poluída de tostões tem certa dificuldade em processar tantos zeros. Mas dá para comparar: sabemos, com certeza, que essa quantia é quase o mesmo valor envolvido na venda da firma de desenhos animados do Steve Jobs, a Pixar, para os Estúdios Disney. E olha que as duas empresas não precisaram escravizar metade dos EUA e endividar a outra para movimentar esse dinheiro. Já pensou?


O meu, o seu, o nosso orgulho de produtor.


E antes de ser atropelado por uma colheitadeira-bomba ou soterrado por contêineres suicidas, deixo bem claro que nada tenho contra a nossa pujante atividade agrícola. Plantar sempre foi e sempre será uma excelente forma de engrandecer a nação – desde que a safra seja saboreada pelos compatriotas e apenas os excedentes sejam exportados, de preferência processados de alguma maneira que os faça valer dinheiro de verdade. Se você parar para pensar vai chegar à conclusão que o atual modelo brasileiro, essa tal da “agricultura capitalista de modelo exportador”, além de não ter futuro, gera um presente muito triste. E o passado? Bem, basta lembrar que o Brasil, durante o ciclo da monocultura da cana-de-açúcar, teve, durante quase cem anos, uma renda per capita superior à da Inglaterra (a dona do mundo, então). Noves fora, zero: ao final da farra, acabamos devendo até as calças para esse mesmo Reino Unido.

Trezentos anos depois, a história se repete, bastando trocar o leão inglês pela águia norte-americana no topo da cadeia alimentar. Claro, estamos todos desculpados, três séculos é um período curto, não deu tempo para pensar direito no assunto. Estávamos muito ocupados dando terrenos, isenções e gente que recebe baixos salários para incentivar a montagem do “nosso” parque industrial. E hoje, num mundo que gira em torno de conceitos, continuamos oferecendo produtos e recebendo em troca a mixaria que a margem de lucro do novo capitalismo reserva para gente como nós. E ainda lutamos, suamos a camisa, rezamos, vendemos a alma, suplicamos a Deus e todo o mundo, mendigamos pelo planeta para que, por misericórdia, reduzam as barreiras alfandegárias, sanitárias e fiscais. Bem feito, quem mandou não estudar? Diriam novamente nossos antepassados, burros e metidos à besta.


É preciso pagar para – talvez, quem sabe, um dia – ver.


Vamos pensar juntos. Claro que podemos virar esse jogo, ou, pelo menos, reduzir a diferença dessa goleada histórica, simplesmente investindo em ideias. E não estamos falando aqui em abrir uma estatal, fazer concurso e trancar pessoas supostamente inteligentes em repartições públicas com a obrigação de “ter ideias”. Ou de lançar os programas “Pensa Brasil” e “Burrice Zero”. Os países de “primeiro mundo” já inventaram uma fórmula genial para criar um ambiente propício a bons pensamentos: pagar salários decentes e não se meter na vida das pessoas. Uma coisa muito simples, que faz o dinheiro circular, esquenta os traseiros dos que estão sentados sobre cofres ociosos, enfim, redistribui um pouco melhor a mixaria. É quase certo que, em se aplicando este revolucionário método gerencial, importado da Europa, EUA e Japão, o nosso poder de raciocínio médio melhore rapidinho. E os César Lattes, Newton Freire-Maia, Paulo Leminski, Jamil Snege e Marcos Prado do futuro (isso só para ficar em alguns exemplos paranaenses) mesmo que continuem sendo considerados estranhos no ninho, serão deixados em paz nos seus cantos, pois renderão bilhões de dólares por cabeça, em benefício do País, inclusive os menos dotados de neurônios, como eu e você.

Morrendo de medo do escorpião no bolso.

Mas existe aí um pequeno probleminha. Isso de investir em “ideias” nem sequer passa pelo pensamento dos nossos governos ou da brava elite que se beneficia com a mixaria que rende a venda em estado bruto do país. Ganhar dinheiro com ideias? Só para imaginar já dá muito trabalho. Pensar é caro demais. Raciocinar é custoso. Pesquisar é demorado. Conviver com pessoas inteligentes é um perigo. Ler dá dor de cabeça. Pagar bem e dar às novas gerações um tempinho livre para inventar alguma coisa que preste dá câncer na próstata. Pagar um tostão pelo seu pensamento? Nem pensar.

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Abrindo os cofres, ou um protesto contra a civilização.

"A precaução tomada contra ladrões que abrem cofres, examinam sacolas ou saqueiam gavetas, consiste em mantê-los com cordas e trancá-los com fechos e cadeados. É a isso que o mundo chama de sagacidade. Porém, chega um ladrão musculoso e leva a gaveta nos ombros, com o baú e a sacola, e foge, levando tudo nas costas. Seu único receio é que as cordas, fechos e cadeados não sejam bastante fortes. Por conseguinte, o que o mundo chama de sagacidade não é simplesmente assegurar as coisas para um ladrão musculoso? E atrevo-me a afirmar que nada daquilo que o mundo chama de sagacidade é outra coisa senão poupar para os ladrões fortes. E nada do que o mundo chama de prudência é outra coisa senão entesourar para os ladrões fortes.”

Texto do chinês Chuang Tsé, escrito quase 300 anos antes de Cristo, tradução de Marques Rebelo.

segunda-feira, abril 26, 2010

Presença, saudade, distância

Léia Leite e Marcos Prado navegando para algum lugar.

Revi a foto e lembrei do poema. Então, coloco os dois juntos, para ver onde é que isso tudo vai parar. Se é que alguma coisa realmente para.


Entre essa e aquela estrela
Um espaço em branco
Onde a noite é mais preta

Imenso infinito desmedido vácuo
De uma estrela solitária
À solidão de outra estrela


(Giuseppe Ungaretti - versão brasileira de Roberto Prado)

Acredito na definição do Erza Pound da poesia como conversa entre pessoas inteligentes. E quando esse papo acontece é muito bacana. Pois bem, aconteceu. A San, que pilota o blog Nervosa, com link aqui e na lista ali ao lado, lendo a minha versão fez a dela a partir do mesmo original do Ungaretti. Mais que depressa, extraí a pérola lá dos coments e colei na postagem, para que vocês possam acompanhar esse diálogo.

Daquela estrela

Até a outra

Se estende cativa a noite

No excessivo vazio

Vertiginoso vazio

Da solidão que se mede

Daquela estrela

Até a outra



(Giuseppe Ungaretti - versão brasileira de San)

sábado, abril 17, 2010

Bob Dylan e Allen Ginsberg sete palmos acima do chão

Foto de Ken Regan (obrigado pela bronca, Ivan Justen, procurei e achei o autor do flagrante histórico)

Bob Dylan e Allen Ginsberg no túmulo do Jack Kerouac. A foto é roubada do blog Espelunca, do grande Ademir Assunção. O caminho para esta e outras preciosidades gráficas e textuais é este: http://zonabranca.blog.uol.com.br/

Na matéria que acompanha a foto ele fala dos diversos mundos reais e virtuais. Faço eco e ouso acrescentar: - Que o silício nos seja leve!

Vão lá e digam que fui eu que mandei para ver se ele perdoa o afano.

(Roberto Prado)

PS.: Alguns acham que não se deve modificar um post, que é histórico, como uma foto não fotochopada ou a página de um livro. Mas, neste caso, tenho explicações: não estou excluindo nada para incluir o que segue abaixo. É que o meu blog e o do Ivan Justen sincronizaram em um personagem da foto, na mesma data. Então, segue a tradução da letra do Dylan, para seu deleite. (RP)

Como Uma Pedra Rolante

era uma vez
você vestida de xadrez
mão de vaca pros mendigos
sendo eleita a miss do mês
diga?!

todo o povo já xaveca
"te cuida aí, boneca,
tua caranga um dia breca"
você achava isso meleca
inveja das amigas

você só

gargalhava
das pessoas
suas escravas
e agora a sua voz sumiu
e agora o seu tom vazio
vem naquela velha fala
que está na batalha
pelo próximo filé

como é que é
como é que é
ser sem terra em transe
completamente mutante
como uma pedra rolante

você foi aluna
da melhor escola
Senhorita Solitária
contudo já não cola
você sabe só ficava lá
enchendo a cara

ninguém nunca mostrou
como viver longe do lar
e agora você vê que vai ter
que se acostumar a

você sempre dizia
que jamais se renderia
pro malaco misterioso
e agora você nem pia
vê que ele não vende
qualquer guia
e sob os olhos vazios
você somente espia
perguntando sobre o trato
quanto você quer

como é que é
como é que é
ser sem terra em transe
não ter caminho adiante
completamente mutante
como uma pedra rolante

você nunca olhou em volta
pra notar a cara torta
dos palhaços da patota
quando vinham fazer

truques pra você

nunca compreendeu
que não fez o seu
e não tinha um Romeu
pra Julieta que você quis ser

você cavalgava um hipocromo
com o seu diplomata
o qual levava nos ombros
uma gata acrobata

e agora você percebe
como a vida é ingrata
não tinha selo ou moeda
aquele numismata
que levou de você tudo que pôde
até mesmo a fé

como é que é
como é que é
ser sem terra em transe
não ter caminho adiante
completamente mutante
como uma pedra rolante

a princesa está na torre
e o povo lindo quase morre
nesta festa bebe e pensa
que se garantiu por cima

vai trocando todo o tipo
de presentes e coisinhas
mas segure o bracelete
e empenhe logo a sua joia, mina

você costumava
ficar tão encantada
com o Napoleão dos farrapos
e as frases que ele usava

vá pra ele agora

compareça à sua chamada
quando você não tem nada

você não tem nada a perder
você é invisível agora
não restou nenhum segredo em pé

como é que é
como é que é
ser sem terra em transe
não ter caminho adiante
completamente mutante
como uma pedra rolante



(Like a Rolling Stone,

de Bob Dylan,
em versão brasileira de

Ivan Justen Santana)

sexta-feira, abril 16, 2010

Poe, Baudelaire, Rimbauld e Édison José da Costa


Eu e meus amigos fizemos algumas-diversas traduções. Uma delas é essa aí de cima, de 1985, com magistral caligrafia do Osvaldo Miran (que fez também a direção de arte e ainda bancou a edição). Era um pôster com a nossa tradução do O Corvo, do Edgard Allan Poe. Ela começava assim:

O corvo

Num dia desses,
no exato minuto do último instante,
eu, bêbado como sempre,
num sonho de escriba extravagante,
delirava às vezes demais.

Daquele gélido julho

não vou esquecer jamais.

Eu, matando saudades da morta,
sugava do litro e de um livro,
que já não idolatro mais.

(Edgard Allan Poe - livre adaptação de Roberto Prado, Marcos Prado, Antonio Thadeu Wojciechowski e Edilson Del Grossi)

E por aí ia. Quem quiser ler o poema inteiro é só clicar aqui. Alguns anos mais tarde essa versão d'O Corvo foi incluída num belo livro de uma editora paulista, em edição trilíngüe, junto com as traduções do corvão feitas por Baudelaire, Fernando Pessoa, Machado de Assis e outros tantos. Saiu também no livro Os Catalépticos (que inspirou o nome da banda curitibana-internacional com link logo acima), junto com outras traduções (Dante, Yeats, Rimbaud, Mickiewicz, Camões, Shakespeare, Baudelaire).

Charles Baudelaire foi um caso à parte. Pretendíamos traduzir todo o livro As Flores do Mal. Doce ilusão: de quase 400 textos traduzimos dois (e no pau da goiabeira). Para um trabalho desses precisaríamos ficar anos em tempo integral, sustentados por alguma editora maluca, depenando a alma. Os poemas que conseguimos traduzir foram A alma do vinho e este outro aqui:


O vinho dos amantes

indo belo lindo um dia todo sim
é proibido proibir que tenha fim
bebo o vinho mel, divino néctar,
o céu ainda por cima parece concordar

um par de arcanjos, que figuras!
ambos puros artífices das alturas
eu e a taça, vinhetas da paisagem
o vinho volta à uva, eu, à miragem

no embalo dos tragos a terra gira
mecanismos de um turbilhão inteligente
que tudo ouve sabe vê e só delira

o paraíso já era aqui e paralelamente
em outro entramos, agora como um só
ic! epa! ops! rum... rum... ã? ó!

(Charles Baudelaire - livre adaptação de Roberto Prado, Marcos Prado e Antonio Thadeu Wojciechowski)


Curiosamente, este poema acabou virando letra de duas belíssimas canções, uma do Beto Trindade e outra do Walmor Góes. A versão do Walmor foi gravada pelo Thadeu para o CD Wojciechowski, que foi lançada no CD Wojciechowski, do polaco da barreirinha).


E agora vocês me perguntam, e com toda a razão: e o Édison José da Costa, o que tem com tudo isso? Muito tudo. Pois ele, professor da UFPR, nos deu o privilégio e a honra de fazer parte de um dos mais sérios, corajosos e brilhantes ensaios literários já publicado por estas redondezas. Sério, porque fez uma pesquisa minuciosa e traçou paralelos entre as nossas traduções, justamente as do Baudelaire, com as realizadas pelos tradutores simbolistas do século XIX e ainda fez outras investigações, sem chutes. Corajoso, por usar como base para um estudo publicado em tradicional revista acadêmica, a Letras, o trabalho de poetas talvez um tantinho andrajosos para os padrões da intelectualidade nativa. E brilhante porque pegou a veia, na descoberta, no conceito, no raciocínio e na defesa. Se eu fosse curioso como vocês eu dava uma olhada nesta matéria do Édison José da Costa. A revista Letras nº 51 deve estar disponível nas bibliotecas universitárias por aí, ou no próprio Departamento de Letras da Federal do Paraná.

E para fechar com chave de ouro, uma tradução do Rimbaud de tirar o chapéu (pois o cérebro pula de alegria). E a promessa de lançar o mais breve possível o livro Presença de Espíritos, só com coisas legais traduzidas com alma, de poeta para poeta.


Poema de Arthur Rimbaud

no inverno, rosa, combinaremos
num vagãozinho com almofadas azuis
- um ninho só de cantos macios -
iremos e no bem estar estaremos

para não ver fecharás o olho
pela janela as caretas feias
essas mosntruosidades horrendas
negros demônios e negros lobos

e sentirás a face arranhada
um beijinho feito aranha desvairada
correrá pelo teu pescoço, minha cara

e dirás, "procure" inclinando a cabeça
todo o tempo do mundo à cata
desse bichinho que viaja depressa

(Arthur Rimbaud - livre adaptação de Marcos Prado e Sérgio Viralobos)

Um poema de Roberto Bittencourt


As atuais circunstâncias nas lides políticas da roça iluminada me trouxeram à mente um poema do grande Roberto Bittencourt, publicado no livro Ais de cá, de 1979 (mereceria uma reedição!). Vejam aqui e digam lá.


DESGOSTO NA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA


Que sumam todos

que cada um parta

pela porta de sua

morte

que teima o tempo


que se danem como vozes erguidas

às teias mofosas dos deuses hirtos

que se fundam aos poucos

com o restolho de suas taras


que sumam todos

que cada um solto

pelo salto da sua

morte

seja embalsamado



(Roberto Bittencourt, 1979, do livro Ais de Cá)

Um quase inédito do Leminski

Leminski agradece a atenção dispensada. À esquerda, o compositor e cantor Grafitti, hoje trabalhando na Bélgica.


Eu, o Marcos Prado, o Thadeu Wojciechowski, o Bira Oliveira e o Roberto Jubainski editamos dois números de um jornal chamado Odiário. Um dos colaboradores era o Paulo Leminski, entre criaturas do quilate de Luís Cláudio Oliveira, Aníbal Marques, Luiz Rettamozzo, Solda, Rodrigão Barros, Sérgio Viralobos, José Buffo, Vicente Meneghetti Jr (mais conhecido como O China), Arnaldo Cezar Machado, Alberto Centurião, Plínio Gonzaga e outras estrelas deste e de outros firmamentos.
Pois é. Relendo o número 2 do Odiário me deparei com um poema do Leminski que, até onde eu sei, só tem esta publicação. Então, lá vai ele, para ver se os arqueólogos, exegetas, historiadores e fãs o incluem nas suas obras completas.




(Ode como é que pode ao país
da redundância)

Um vice país governado por um vice
presidente que vice manda e desmanda
sobre um vice bando de vice gentes,
hoje, se diz constituinte.

Na Magna Assembleia, ainda não
apareceu nenhuma ideia.
Discute-se a propriedade da terra,
os meios de conter a CUT e os
interesses dos bancos, que,
nesta terra de brancos
todos os gatos são mansos.

A um povo que só diz sim, uma
elite com alma de pedinte oferece
a comédia de uma constituinte.
Esta pergunta, porém, é eterna:
quem contraiu a nossa dívida externa?
Quem sabe no ano dois mil
chegaremos ao século vinte.
Sim, senhores, o Brasil é o seguinte.

(p leminski 87)

quinta-feira, abril 08, 2010

O inconsistente dom da profecia

Sérgio Viralobos (Foto de Renato Quege, que captou o momento exato em que baixava uma nova profecia).

Na verdade não é frescura aquela dito de que poeta é "antena da raça" e coisa e tal. Acontece, mesmo. Porém, desgraçadamente, sem que o desgraçado do poeta tenha o mínimo controle do processo, como bem observou Sócrates, o craque dos filósofos, em uma de suas sovas bem dadas.

Entre estes receptores de mensagens futuras, a maioria não vai além de bombril na antena de TV - e já está mil de bom. Conseguindo isso, o sujeito já tem direito a virar cambota de felicidade. Outros porém passam da conta e, destes, destaco o meu amigo Sérgio Viralobos, em cujas obras venho percebendo, em décadas de amorosa observação, uma série de legítimas profecias. Não sei por que e nem de onde, mas em seus versos existem diversas antecipações de fatos, acontecimentos, fenômenos, tendências.

Para mostrar a vocês tudo que vi, precisaria escrever um livro sobre o assunto (um tijolaço, inclusive), coisa que só poderei fazer após profetizar as seis dezenas da loto ou depois de morto - com a ajuda de um bom médium. Mas, o que os tempos permitirem, vou postando por aqui. Uma dessas, que destaco apenas para fazer eco aos noticiosos, foi profecia escrita em um tempo que efeito estufa era conhecido apenas pelos especialistas em amadurar banana. O poema a seguir é de Sérgio Viralobos, com a luxuosa parceria de Thadeu Wojciechowski e Marcos Prado.




INCONSISTÊNCIA

"Chove dentro da alta fantasia."
Dante Alighieri


Um temporal desaba sobre a garoa fina
A Terra vira aquela água
Tudo se desmilingüindo
O mar, entre os rios, afluindo

A Torre de Pisa escorrega sobre a Capela Sistina

Um alpinista se afoga no Aconcágua
Por baixo do Canal da Mancha, escafandristas não vêem a luz do fim do túnel
Toda a engenharia do Japão em vão: maremoto, não terremoto
A Estátua da Liberdade bóia no Planeta dos Macacos
No Rio de Janeiro, nivelados por baixo flats e barracos
Cumpre-se a profecia do Anjo Exterminador de Buñuel
Vista assim do alto, a Terra azul fica feia na foto

(Sérgio Viralobos, Antonio Thadeu Wojciechowski e Marcos Prado)

domingo, abril 04, 2010

Existe vida além das tumbas



Walmor, Fernando, Arnaldo, Rodrigo, Almeidossauro e Flávio: alta concentração de talento por metro quadrado de palco. Foto de Maringas Maciel.


Ontem eu convoquei meus guarda-costas, saí das catacumbas e fui ao TUC (que aliás, também fica em um subterrâneo). Lá, dois grandes espetáculos esperavam minhas vistas tão fatigadas. Primeiro. O show dos Eles Mesmos. Vou tentar resumir a experiência.


A primeira sensação é de que não é possível sair tanto som de apenas três caras. A banda mescla música mexicana, punk, rock-a-billy e mais as coisas que eles extraem lá da cabeça deles mesmo (especialmente estas). O vocalista Fernando Gouvêa tem um vozeirão daqueles do tempo em que se cantava sem microfone (Vicente Celestino, Francisco Alves). E não economiza voz. E não sonega sentimento. Além disso, como todo guitarrista de power trio, tem que desdobrar em um halterofilismo instrumental para manter a casa de pé. O baixista dos Eles Mesmos é um caso à parte. Valter Ferraz alterna e mistura todas as técnicas em um instrumento sem trastes (segundo ele mesmo, o único traste daquele baixo é quem o toca, rererer). O baterista Vinícius Marçal parece ligado na tomada, é só a banda fazer clic! que ele sai detonando sem nem ao menos desmanchar o penteado (opa, o cara tem cabelo raspado, mas vale a imagem).

Letras bacanas, interpretadas com muito sangre latino. Gostei bastante da “Decida” e ainda trago na cabeça os ecos do “Serial Killer do Amor”. Òbvio que fiquei embasbacado, também, com a versão dos Eles Mesmo para o clássico Boemia... Valeu, rapaziada.

Esperando o segundo tempo, fiquei a matutar o que nos aguardava, já que no palco se reuniriam nada mais nada menos que uma mistura do sempre chique Rodrigo Barros, voando baixo, o Walmor Góes, indiscritível guitarrista e o vocal do sempre surpreendente Arnaldo Machado. O nome da tropa? Paz de Usinas.

Pois não é que os caras tiveram a ousadia de tocar sobre uma complicada base eletrônica pré-gravada? Correndo este risco e enfrentando a inexorável exatidão das batidas eletrônicas, debulharam uma série de canções (dá pra chamar assim?) nascidas da extrema invenção, com letras de uma poesia lancinantemente emocionante e uma execução muito além da burocracia.


O Arnaldo Machado tem uma presença de palco que impressiona. Aliás, qual será o segredo de tamanho preparo físico? Tai-chi-chuan? Chá de losna? O cara é cantor, ator, dançarino, tudo na mesma cena. É a palavra e o gesto in concert. O Walmor, como sempre, esmerilhou. O Rodrigo, que valeria só pela presença, charme e elegância, mostrou que não era apenas um baixista improvisado no começo da sua carreira, enfrentando ali, ao vivo, uma série de difíceis desafios harmônicos.

Legal saber que tem gente na cidade disposta arriscar as reputações (e as correspondentes famas de mau) para enfrentar com tamanha coragem o desconhecido. Ah , não dá para esquecer que em um dos mais impressionantes momentos do espetáculo, o Paz de Usinas contou com o auxílio luxuoso nos vocais do incrível Almeidossauro, do visceral Flávio Jacobsen e do Fernando Gouvea, the voice.

Na sequência, conforme o programa, eles cantariam The Clash acústico. Mas acho que não deu tempo. Mas, tudo bem, quem precisa disso. Ora, o The Clash... o The Clash que se... Espero, rezo e torço para que o trabalho destes dois trios continue. E que façam muitos shows. Aí até eu, que sou eu, vou acabar saindo da tumba.


(Roberto Prado)