sexta-feira, dezembro 22, 2006

Um poema aprovado pela minha mãe

Dona Nadyr e eu relembrando os bons tempos do rádio mudo.

Dia da criança

num lar ao léu onde chorar é a lei
alguém vagava pelas ruas do Brasil
vinha com saudades do Casimiro de Abreu
aurora da vida, imensa pátria sem pai

alguma coisa ali voltava aos trilhos
um calor carinho vindo de longe

pôs um novo menino entre meus filhos

com um sorriso não sei de onde

foi ali, na hora em que o céu era todo seu,
que eu acariciei meus cabelos por você

foi só ali, pai, que me adotei

e aí foi que senti, só, que só faltava eu

(Roberto Prado)


Outra coisa: dêem uma espiada no texto do Bortolotto sobre o Natal, Um presépio pra alimentar o incêndio

quinta-feira, dezembro 21, 2006

Eu e a guerra de símios

Aí, macacada: o número 54 da revista Idéias, da Travessa dos Editores, saiu com esse texto, que versa, entre outras coisas, da minha reconhecida incompetência na arte do arremesso de fezes. E já tem outro engatilhado, para o número 56, com o singelo título de "Lamentações de um coitadinho subtropical", que deve estourar semana que vem nas bancas. Vejam lá.




Apela para a ignorância
o ser de alma macaca


Eu estava matutando cá com meus botões. Mas, como a roupa que uso não tem botão coisa nenhuma, garrei a imaginar se não somos todos um pouco responsáveis pela preservação das obras geniais que cruzam nosso caminho, tanto quanto pelo ar, pela água, pelas plantas, pelos bichos. Confesso a você – e peço que espalhe – que senti um tantinho de culpa ao verificar a degradação do habitat literário, a imundície jogada na terceira margem do rio, a asfixiante psicosfera que paira sobre a nação zumbi. O frágil ecossistema intelectual nativo virou atoleiro e, nesse brejo das almas, é natural que os tímidos pandas se recolham à sua extinção e os mosquitos da malária reinem absolutos. A gente deste século, assombrada, vê as últimas reservas cercadas de símios, esses sim, sempre dispostos a bater no peito, arremessar fezes e urinar nos cantos para demarcar seus territórios.

Agora chega desta ladainha: vamos empunhar as bordunas do espírito e defender a biodiversidade humana. Com muito respeito, é claro, pois sem ele você morre atropelado pelo carrinho de sorveteiro - como nos ensinou Nelson Rodrigues. Para começo de conversa, fim de papo, como disse o Marcos Prado: se eu, que sou eu, de vez em quando coloca um pouco de oxigênio nesta mistura, você, que é muito mais esperto, certamente será capaz de colocar muito mais. A primeira lufada de ar fresco, perfumado de araucária, eu mandei vir do Jamil Snege: “Já inspecionei a proa, / amarrei a carga, / desatei a vela. / O vento sopra forte / e enfuna meu coração de alegria. / Agora é contigo, Senhor. / Toma o leme / e risca o rumo do meu barco / - não penses que irei por este mar sozinho.” E de Minas Gerais, para as emergências asmáticas da vida, carrego sempre comigo uma bombinha de Affonso Ávila e o ar de sua graça: “dentro da faixa / fora do perigo / dentro da fauna / fora do perigo / dentro da farsa / fora do perigo / dentro do falso / fora do perigo / dentro do fácil / fora do perigo.” No meio do caminho tinha um Bertolt Brecht e com ele, respirando fundo, a gente aprende que o Brasil é lá e a Alemanha é aqui: “Sento na beira da estrada / Enquanto o motorista troca a roda. / Não gosto do lugar de onde venho. / Não gosto do lugar para onde vou. / Então por que espero essa troca de roda / Com tanta impaciência?” Você, que conhece a alma humana, já deve imaginar que, na maior tempestade, esse alemão um dia acabaria dizendo algo assim: “Fora essa estrelinha apagada, pensei, / Não temos nada / E ela está toda suja e devastada / Ela é nossa casa, / Nossa única casa / E olhe só o estado da coitada.” Da água corrente de uma montanha do Japão veio o Kobayashi Issa, para refrescar nossa pobre alminha com coisas como “o mendigo olha / e reconhecendo-me / devolve a esmola “ e molhar nossos olhos com uma alegria quase extinta: “a neve mexe / no calor das crianças / a aldeia se derrete”.

Bem, isso já é um começo. Agora é com você. Mas eu já vou avisando que participar dessa cruzada pela melhoria da atmosfera mental do país é arrumar para a cabecinha e encarar a ira da massa ensandecida (procedimento que eu sugiro seja realizado com bom humor, malícia e precisão). Portanto, nada de reclamações. A batalha é inglória para quem procura sarna para coçar, chifre em cavalo, cabelo em ovo – coisas que, muitas vezes, achará. Mas, em plena desgrama, garanto que, de vez em quando, ouvirá o Domingos Pellegrini, direto do seu sítio: “Cadê os chinelos / aquele sonho cadê / vou procurar de joelhos / assim já estou pronto para agradecer.”

Leia, espalhe e preserve o que é bom. Numa dessas você encontra por aí, soprando com o vento pelas ruas de Curitiba, os mestres Marcos Prado e Márcio Cobaia Goedert no exato momento em que flagaram e eternizaram um simples freqüentador da birosca de uma periferia qualquer: “o velho e o bar // o velhinho é a alma do negócio / deixa a nota amassada e sai catando cavaco / pensou que via o carlos drummond de andrade / mas era uma valeta no meio do caminho / o pau d’água mergulhou na areia movediça / transformando-se no monstro do pântano”.

E mais não digo, pois os meus botões preferiram guardar a boca pra comer farinha.


(Roberto Prado)


Notas:
1) “Apela para a ignorância o ser de alma macaca” - verso emprestado do poema “Todos os lugares a deus” de Marcos Prado e Antonio Thadeu Wojciechowski. 2) Poemas de Bertolt Brecht – versão brasileira: Roberto Prado. 3)
Poemas de Kobayashi Issa – versão brasileira: Roberto Prado e Antonio Thadeu Wojciechowski

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Criatura memória

nossa senhora das minhas musas
minha angelical divina fada
que a treva bata em sua trave
antes da batalha ser travada

sopre sua brisa, diva santa elegância
relevo morno, enlevo doce, leite, úmida alvorada
me leve logo para que eu não esqueça
como essa vida é difícil de ser lembrada

(Roberto Prado)

sábado, dezembro 09, 2006

não acordei esta manhã porque não dormi

Tem coisa boa rolando na cidade. Confira abaixo e para ver os horários entre no site da Fundação.


Vai ter música, poesia, teatro, vídeo, cinema, performance, cartazes. Para sentir como vai ser, tome essa:

as mil e uma faces do desespero


não acordei esta manhã porque não dormi

ontem sorumbático, insone agora

com o mesmo olhar que te viu indo embora


quando é que você vai vir

e ver quem te viu e quer te ver?


só vejo no espelho angústia, depressão, melancolia

solidão, mágoa, saudade, desgosto

quando as madrugadas deixarão de ser noite e dia?


E mais esse:


se o teu amigo diz que entende

o que você está escrevendo

peça a ele um documento

mas antes registre a patente

se um inimigo diz que entende

o que não leu do que você está escrevendo

meta fogo em tudo que é documento

mate e descarregue na patente


se sentir, porém, que ninguém entende

o que você está escrevendo

jogue tudo que fez na patente


mas se sentir que você mesmo não entende

aquilo que está escrevendo

mergulhe, feliz, pela patente

(Marcos Prado)


segunda-feira, dezembro 04, 2006

Semana Marcos Prado: o andamento da parada


Lançamento de Os catalépticos. Ao fundo, o grande Adriano Sátiro.

Aos beijos, aos chutes, aos poucos, aos montes, Marcos Prado amava Curitiba e Curitiba amava Marcos Prado, cidadão que tinha uma presença capaz de fazê-la menos triste, menos cinza, menos pobre, menos jacu. Agora, passados 10 anos da sua morte, a rapaziada da cidade resolveu dedicar uma semana de dezembro (de 9 a 15 - data do aniversário do poeta) para colocar o bloco do Marcos Prado na rua. Saiba direitinho sobre os eventos clicando AQUI e indo a um belíssimo blog especialmente criado para a ocasião. Aproveito para postar três poemas e algumas fotos do Marcos.


Marcos, de chapéu, pressente a presença do fotógrafo no botecão. À mesa, Léia Leite observa.

todo dia encontro um artista novo
eu escrevo, eu pinto, eu desenho, eu canto
mas todos têm aquela cara de ovo
trato-os humildemente mas com espanto
isso não está escrito na cara deles
não vejo em nenhum o ar de sua graça
nem o trato nobre ou o ímpeto reles
raro o dono da própria desgraça

tenho por eles, porém, um amor triste
um amorzinho vagabundo, menos que inho
que de tão diáfano não sei como resiste
um dia pego um deles pelo colarinho
estrangulo no balcão aos gritos: despiste
não fique roxo, não obre, isso é um carinho

(Marcos Prado)

Marcos (à direita) observa Beijo AA Força detonando.

a mentira é a melhor amiga das artes
nela, gelatinosa, as glosas seculares
minúcias de paisagens inexistentes
um coração onde cabe um milhão diferentes

dondoca de agora, amanhã de coturno
segue sempre os passos de um antigo perjuro
a arte imita a arte que imita tudo
e é profunda, é verdade, bem no fundo

mas somos piores que os pintores de florença
ridículos comparados aos poetas de provença
michelângelo cagaria em cima de nossas estátuas
beethoven se limparia com as nossas pautas

que é a nossa dança diante de um delírio índio?
que é um soco nosso perto de um clay vindo?
por que, se finda é a arte, continuar mentindo?
repetir o que se repetiu de novo se repetindo?

(Marcos Prado)


O sofá é o melhor amigo do homem.

não há nenhum lugar melhor que o deserto para as idéias
ponha-se o nada sobre ou sob o absoluto e tudo será areia
o destino traçado e a rota escolhida do pensamento não calçam as mesmas pegadas
quando um homem pensa sozinho pensa por todos
não há liberdade maior do que estar sozinho no deserto nem sofrimento maior também
as idéias são como fragmentos de areia que se espalham e só
se juntam com exuberância quando
como dunas
cada dia num lugar diferente
quanto ao céu
ele não existe neste deserto por enquanto
onde ele está ninguém que caminha pelo deserto tem a mínima idéia

(Marcos Prado)

terça-feira, novembro 21, 2006

Lou Reed pela lírica de Marcos Prado

Os velhos e bons Lou Reed e Laurie Anderson

O Marcos Prado fez versões brasileiras de vários poetas, sozinho e em parceria com criaturas ilustres como o Sérgio Viralobos, o Thadeu, o Edilson Del Grossi e outras menos ilustradas, por exemplo, eu. Em outra vertente, traduziu poesia cantada de figuras clássicas, com o auxílio luxuoso de personagens heróicos como o Ivan Justen. Os dois juntos fizeram muitas e boas, pretendiam lançar um livro só de letras traduzidas - algumas em parceria com o Edson de Vulcanis, o Márcio Cobaia Goedert, o Edilson. É um livraço e até agora não saiu (apenas dois exemplos daquelas belezas estão ao alcance, de Jim Morrison e Lou Reed, publicados no livro Ultralyrics, que saiu pela Travessa dos Editores). Então, aqui vai mais um exemplo. Dos velhos e dos bons.

suzana, eu te amo

você partiu meu coração e me fez chorar
disse que não sou um cara com quem se dance
mas agora volto pra te provar
que sou chegado num romance

faça o que tem a fazer
faça o que puder suzana cano
faça o que quiser fazer
mas lembre: eu te amo

faça tudo de uma vez
e mais uma segunda, suzana cano
faça o que quiser fazer
mas lembre: eu te amo

amo quando está boa
amo quando está sacana
faça o que quiser fazer
mas lembre de quem te ama


(I love you, Suzanne - Lou Reed / Versão brasileira de Marcos Prado)

domingo, novembro 19, 2006

Jokerman

Uma das coisas legais da miséria brasileira é que basta revirar umas gavetas para se achar coisas geniais inéditas. Por exemplo, esse roteiro para um curta, feito pela dupla Marcos Prado e Thadeu, há uns bons 15 anos. Leiam e façam o filme na cabeça. Ou esperem sentados.

Papel de Palhaço

Roteiro para curta-metragem


Cena 1

Executivo entra em sua sala de trabalho, esfrega as mãos e senta-se à sua mesa. Está sorridente.

Pega uma das folhas que está sobre sua mesa cheia de papéis, lê, atenciosamente, e rasga. Joga no lixo.

Volta-se para a pilha e, já sem sorrir, avalia a quantidade de trabalho que tem pela frente.

Pega outro documento, lê, nem tão atenciosamente, e rasga. Repete o gesto. Parte pra cima de outro. E outro. E outro, assim, sucessivamente até estraçalhar o último pedacinho.

Ao lançar o último pedacinho faz gesto típico de Pelé ao marcar um gol. Câmera pega em big close o pedacinho de papel em sua trajetória até a cesta de lixo transbordante.

A euforia do executivo acaba com a entrada da secretária que traz nos braços uma enorme pilha de papel que, educadamente, deposita sobre sua mesa. De cima da pilha ela pega um documento para que o executivo assine. Vê-se claramente a palavra “Contratação”, no alto do papel.

Secretária sai com o documento sentindo todo o olhar de seu chefe sobre sua bunda.


Cena 2

Executivo e assistente, em suas respectivas mesas, rasgando papéis, bastante animados e decididos.

Várias pessoas trazendo pilhas de papel são mostradas apenas pelo detalhe de parte do corpo, à altura dos papéis que carregam.

Os dois, à medida que aumenta o volume das entregas, aceleram da mesma forma a linha de produção de papéis em pedaços.

O ritmo vai acelerando, gradativamente.

Big close em mão do executivo, que sangra após corte em um grampo. Executivo olha para a mão e é cercado por vários entregadores. Câmera filma-os do ângulo de visão do executivo. Ou seja, aparecem pilhas de papel rodeando a sua mão.

Abruptamente, executivo reinicia o trabalho, deixando sangue sobre os papéis que rasga.

Ritmo dos carregadores aumenta ainda mais.


Cena 3

Secretária entra, munida de guilhotina e picador de documentos e une-se aos dois que estão descabelados e desgravatados, trabalhando alucinadamente.

O detalhe é que ela ajeita os papéis delicadamente para só então destruí-los.

O executivo levanta, abre um fresta na persiana e espia.

Câmera sai dali para a rua, onde caminhões, carros, garis, carteiros, carregadores e transeuntes curiosos estão na maior agitação.

O que está acontecendo na verdade é o seguinte: caminhões de lixo de um lado e caminhões de entrega do outro estão provocando o caos no trânsito da rua, pelo descomunal congestionamento.

No corredor do prédio, uma verdadeira guerra está sendo travada entre os que entram com papéis e documentos e os que saem com os sacos de papel picado.

Clima pesado. Empurrões. Sacadas.

Câmera retorna pela mesma fresta. O escritório a esta altura já está quase tomado pelos papéis.

Na pilha ao lado de seu assistente que está na últimas forças, quase completamente esgotado, câmera dá um close na guilhotina onde se vê a mão da secretária separada do corpo mas segurando firmemente um maço de papéis.

Assistente desaparece.

Executivo olha para as pilhas que despencam sobre ele e pula, como se estivesse mergulhando. Câmera acompanha seus movimentos. Close para emersão no meio dos papéis, executivo respira aliviado, puxa o ar e mergulha decidido.


Cena 4

Executivo mergulhado em mar de papéis, chegando ao relógio ponto. Limpa o local, localiza o seu cartão ponto, introduz na máquina, bate o ponto, confere e rasga-o.

Câmera tipo olho do executivo vai passando pela ficha técnica que nada mais é do que fragmentos de envelopes e documentos que estão no caminho.

A câmera é também filmada por outra câmera saindo em direção à porta.

Volta em close para os envelopes e papéis com os últimos nomes da ficha técnica e sai para a calçada, onde está, bem no meio, um solitário e pequenino pedaço de papel rasgado escrito fim, à mão.

(Marcos Prado e Antonio Thadeu Wojciechowski)

domingo, novembro 12, 2006

Para a segunda feira fluir melhor


Um dia desses

Nuvens leves, vento sereno, quase meio-dia.
Diante das flores, um regato corre,
sorrindo entre os chorões.
Os homens não podem compreender
a alegria que transborda do meu coração.
Dizem que estou alegre sem motivo,
como uma criança.

Li Po (China, 701-762 d.C. Versão brasileira: Roberto Prado)

Um livro que eu levava no bolso do casaco


Um trechinho do livro Invenção de orfeu, do Jorge de Lima, cuja leitura eu recomendo com entusiasmo juvenil desde 1976 e que a senilidade não me deixou esquecer.

Também há as naus que não chegam
mesmo sem ter naufragado.
Não porque nunca tivessem
quem as guiasse no mar
ou não tivessem velame
ou leme ou âncora ou vento
ou porque se embebedassem
ou rotas se despregassem,
mas simplesmente porque
já estavam podres nos troncos
da árvore de que as tiraram.

Jorge de Lima (1895/1953)



quarta-feira, novembro 08, 2006

Mistérios infra-informáticos


Não posso dizer o que aconteceu com o blog durante esses dias. Pessoas reclamaram que ficou inacessível, conteúdos teimaram em não aparecer, algumas coisas sumiram de vez. Sei lá. Mas joguei sal grosso em volta da CPU, coloquei uma vassoura de ponta cabeça atrás da porta e parece que agora voltou a engrenar. Espero.

parafuso

longas datas até parecem ontem
monte de coisas tem memória curta
ando a cata de que me contem
certos fatos de maneira torta

o corpo crê lembranças vivas
a alma diz sofrer horas mortas
e se separam na via das dúvidas
deixando ontens pra pagar na volta

ao desencarnar não me desmontem
certamente falta um parafuso
algumas partes há que se rompem
entre outras já quase sem uso
(Roberto Prado)

sexta-feira, outubro 13, 2006

E o tempo não passa, torcida brasileira.


A CPI havia perdido a graça. A poeira baixou e, junto dela, nós também retomamos aos poucos o contato com a insuportável crosta terrestre.

Mas, quando o vazio da alma já ameaçava entrar em colapso e se tornar um buraco negro, eis que veio a salvação: a Copa. A Copa, claro, a Copa, como é que a gente pode esquecer uma coisa dessas? Só a expectativa já nos ergueu sete palmos acima do chão.

De repente, lá estávamos nós, inflados de gases nobres, leves criaturas aladas, livres da praga bíblica que nos condenou a cavocar a terra. Infelizmente, até a própria Copa do Mundo um dia tem fim. O indulto de futebol acabou, a lei da gravidade voltou a vigorar, vestimos a velha camisa listrada e saímos por aí, com bola de ferro no pé e picareta na mão.

As promessas do Pan, assim como desgraça pouca, não nos comovia. A máquina do tempo, emperrada, fez com que as semanas passassem a se arrastar penosamente, desembocando em segundas-feiras com o peso de muitos janeiros.

O resto você já sabe: para nossa sorte, era ano de eleição. O sol retomou seu ritmo, a vida se reconstruiu, cheia de fé, à espera das pesquisas, das denúncias, das anedotas, dos santinhos e, acima de tudo, dos debates, meu Deus, os benditos debates. Até a chuva parou, para não atrapalhar com aquele barulho irritante de água caindo pelas calhas. Agora, com licença, somos amigos, você é muito boa gente, mas, fique quieto, silêncio, nem mais um pio:

- Quer fazer o favor de calar essa boca, que eu estou tentando ouvir o horário eleitoral?


uma letra

puxe um silêncio do estoque
e deixe a letra bater
chame um batuque exato
para o silêncio dançar

puxe
chame
dance
e deixe

evoque que vem
no espírito da letra
todas as letras

que o silêncio tem

quarta-feira, setembro 27, 2006

Um texto do Tao

Eu, o Alberto Centurião e o Antonio Thadeu Wojciechowski encaramos a parada de traduzir a obra do sábio chinês Lao Tse. O resultado foi Tao: O Livro. Aproveitando a deixa eleitoral, selecionei dois dos 81 textos do livro, publicado em 2001 e sob ameaça de reedição. Leiam e me digam: é ou não é?

Conservador Revolucionário

O conservador é escola do revolucionário.
O revolucionário é mestre do conservador.

Por isso o homem de Tao revoluciona a poeira dos caminhos
mas conserva o peso da responsabilidade.

Não perdendo o sono por aplausos ou vaias
a vida não lhe é um pesadelo.

É claro que é possível ordenar pelo não mandar
sem necessidade de conflitar os extremistas.

No púrido conservadorismo o bem se imobiliza.
Na frívola revolução o que é ruim vira moda.


O Ter Coração

Sábio não tem opinião nem sentimento.
Nem por isso deixa de saber o que o povo acha
e de sentir muito o que o povo sente.

O bem e o mal dos outros
lhe são indiferentes
pois estão fora de si.

O bem está bom.
O mal também.
Para o bom diz: não está nada mau!
Para o mau diz: tenha a bondade!
Tao é a virtude.

A mentira e a verdade dos outros
não lhe são diferentes
pois estão dentro de si.

A verdade é crível.
A mentira é incrível.
Para os honestos diz: é verdade!
Para os mentirosos diz: não diga!
Tao é a fé.

O sábio não precisa viver no outro mundo
pois esse é um mundo bom e verdadeiro.
No coração do sábio cabe todo mundo
e todo mundo sabe quem são seus filhos.

(Textos extraídos de Tao: O Livro, de Lao Tse, tradução de Alberto Centurião, Roberto Prado e Thadeu Wojciechowski)

quinta-feira, setembro 21, 2006

Lá por volta de 1986, eu o Marcos, o Thadeu e o Sérgio Viralobos publicamos um livro chamado “Perolas aos poukos & Erdeiros do azar”, que tem o capítulo “Odiário Político”, de onde extraí o poema abaixo.


DEMOCRACIA

"declaro agora o carnaval
repitam a sobremesa
e antes do cair do sol
acabe-se a pobreza"


(Beto Trindade/Roberto Prado)


o povo desse povoado
resume tudo num refrão
"só dá ladrão, só dá ladrão"
mas sempre vota no mais votado

o povo é mais um na multidão
não vejo ninguém do meu lado
patife, pilantra, escroque, deputado
são sinônimos de rufião

"o povo não merece perdão"
pensa o general desde soldado
"o exército não tem salvação"
diz o povo de rabo espichado

esse povo nasceu no país errado
só existe em dia de eleição
e ainda assim porque é feriado
e logo voltam à sua nação

(Marcos Prado, Roberto Prado, Antonio Thadeu Wojciechowski)

sexta-feira, setembro 15, 2006



autobiografia animal


1. deixando passar

o polvo
cansa menos
se me movo

2. cadela mia: errata
(Com Marcos Prado)

cadela vira gata
alquimia
vira lata

3. nobreza

existe algo
na rua o cão manco
vira galgo

4. o melhor amigo

rua vazia
a sarna do cachorro
única alegria

5. ontem?

passo de lesma
parece que foi ontem
era ontem mesmo

6. é isso aí, bicho

fome canina
força de touro
sapiência girina

quarta-feira, setembro 13, 2006

Um trecho do Apocalipse



Certa feita, eu e o Thadeu resolvemos fazer a tradução de um texto do João Evangelista, extraído do livro Apocalipse, para a página que naqueles tempos a gente editava na Gazeta do Povo. E fizemos. E publicamos. Veja como ficou.


Visões de Babilônia

E partiu, caiu, ruiu a grande Babilônia e se tornou morada de demônios e covil de toda espécie de espírito mau e destino de toda a corja de vampiros e esconderijo de toda ave imunda e detestável.

E os seus pecados se acumularam até o céu. Recebei agora, segundo as suas obras: o quanto a si mesma se glorificou e viveu em luxúria, colhei igual medida de tormento e dor e pânico e terror.

Choram os reis da terra, mas não a socorrem, de longe, covardes, sussurrando: “ai de ti, poderosa cidade, que chegou sua hora”.

E sobre ela lamentam os mercadores da terra, que por meio da sua prostituição enriqueceram, tremendo, fugindo, blasfemando: “ ai, grande Babilônia, compradora e vendedora de almas, vestida de linho finíssimo, de púrpura e escarlata, adornada de gemas delicadas e pérolas raras, num só golpe foi devastada.”

E todos que se venderam e que dela sugaram e nela viveram e que com ela lucraram na opulência, se afastarão, diante da queda colossal.

E a grande Babilônia do bom e do melhor nunca mais será achada. Nem ruína de espetáculo, nem memória de ciência, nem caco de indústria, nem algazarra de casais e filhos, nem nenhum pio de passarinho se ouvirá na Babilônia caída.

Porque os seus reis foram algozes e seus vendilhões dominaram a terra e todas as nações foram profanadas pelas suas armas e seduzidas pelo seu ouro e desencaminhadas pela sua boca e pervertidas pela sua feitiçaria.

Porque o chão de Babilônia bebeu o sangue dos santos, dos profetas, dos justos, dos simples e dos puros e seu poder embriagado é cúmplice de todos os assassinatos da Terra.

Adeus, Babilônia, adeus. Aleluia, Babilônia, aleluia. Só a fumaça diz o que você foi. E só ela te chora e só ela te eleva, Babilônia, pelos séculos dos séculos, agora.

(Texto de João Evangelista, do livro Apocalipse. Tradução de Roberto Prado e Antonio Thadeu Wojciechowski)

sábado, setembro 09, 2006

imperativo da primavera

humano, assuma o ar silvestre
época de amor conforme o calendário

flores façam tudo o que não digo

coração, aceite o eixo terrestre

ninho esta vida leve no bico
viva de brisa o papo sozinho
estações, aqueçam seu poeta
primaveras, passem com carinho

(Roberto Prado)

terça-feira, setembro 05, 2006

A próxima aventura

Um dia a gente vai acordar com saúde e ânimo de criança esperta, olhar em volta e ver que tudo vai dar certo. Parece loucura, mas, no fundo, sempre fomos assim, dispostos a embarcar em grandes aventuras. E é por isso mesmo que vai dar tudo certo.
Parece doideira? Os navegadores antigos venceram oceanos. Quem diria? Um bando de europeus que despejavam o urinol pela janela, com meia mentalidade medieval mal digerida nos miolos, alguns deles com resquícios de uma terra quadrada na cachola, foram capazes de largar tudo e enfrentar o desconhecido em barcos que mais pareciam cascas de nozes com fraldas esticadas.

Dá para acreditar? E se alguém predissesse que, entre esses europeus, justamente os lusitanos se destacariam em técnica e arrojo, seria internado em inglês, desprezado em holandês, preso em francês, xingado em italiano e assado em espanhol. Quem acreditaria? No entanto, aqui estamos nós, falando português e provando que o impossível está aí para acontecer.

Quem sabe as coisas mais inimagináveis existam justamente para nos dar água na boca, coceira nos miolos e aquela sensação infantil de que você é o herói e que tudo um belo dia vai dar certo. Inclusive deste lado do Atlântico, inclusive no Brasil, inclusive bem aí, inclusive, em sua casa.

Por isso, não queira sair por aí como um maluco. E nem pense em se apresentar para o próximo vôo a Marte. Lá é mais frio que Curitiba. A melhor parte da aventura é o fato dela ser uma viagem que começa sem ser preciso sair.

Mire-se na lição zen: você já passou milhares de vezes por um lugar e, de repente, um belo dia, sem que nada tenha mudado, fica surpreso com um detalhe inesperado que, na verdade, sempre esteve presente naquela paisagem. É essa a iluminação, a sua iluminação pessoal e intransferível, que liberta das trevas as maravilhas que você já tem. Só não as deixa maravilhar.

Mas quando a gente acordar dentro da aventura, é claro que não vai querer estar sozinho. E é aí que está o verdadeiro desafio, o “impossível”, o “improvável”, o nosso oceano desconhecido: não queremos partir deixando amigos para trás e, portanto, tudo tem que dar certo para eles também, ou será apenas mais uma banal aventura solitária.

Sozinho não tem graça, fica parecendo o que aconteceu daquela outra vez, quando a gente ainda achava que tinha que ir bem longe para chegar na frente. Sozinho, o novo mundo é muito chato.

Não! Desta vez, levaremos todos os amigos, todos os amores (ou ser levados por eles, tanto faz). E eles serão quase todos. É claro, vamos fazer uma grande farra, conversar, cantar e dizer poemas. O meu, inclusive, já está até escrito:

a volta triunfal

aqui vamos fazer nossa casinha
ali a fábrica não ficará muito longe
uma escola com vista para a montanha
e o templo sem imagem nenhuma

desta vez não vamos sujar o rio
nem inventar leis desalmadas
apenas novamente simples heróis
descobrindo mundos, trocando fraldas


(Roberto Prado)

quinta-feira, agosto 31, 2006

Vamos sofrer lá no meu apê?

Um tio meu, lá de Santo Antônio da Patrulha, costumava dizer que amizade é vício. E ainda tinha a pachorra de explicar que a doença começava na simpatia, da raiz grega synpathein, algo parecido com “sofrer junto”. Ser amigo dói e faz doer? Confesso que eu, mesmo cultuando a genialidade desse meu tio, não conseguia digerir completamente o conceito, apimentado demais para um mero iniciante no mundo das drogas emocionais. Turbinado pelo meu bando e protegido pela minha turba, eu ainda era incapaz de avaliar os terríveis efeitos colaterais produzidos pelo hábito de compartilhar as dores da tribo.

Agora, vamos aos phatos, como diria, carregando no sal, aquele meu tio. Pense na expansão global de todos os tipos de bordéis e diga se não é verdade que esse sucesso estrondoso nasce da busca do prazer no contato descompromissado com estranhos, inimigos e indiferentes. Seria a prostituição nas relações uma forma de fugir das simpáticas criaturas pelas quais nos doemos de graça? O que vendem os barões da felicidade? Amigos, amigos, negócios à parte, não damos um tostão furado para os coitados que conhecem a nossa face sofredora, a não ser quando eles inventam de adoecer. E, pior, quando se vão sem obedecer o pacto de morrer todo mundo abraçado.

Hoje, depois de uma desabalada sucessão de janeiros, vejo claramente que, assim como esse meu tio de Santo Antônio da Patrulha, venho me entregando gostosamente ao vício de sofrer em grupo. Viver dói, o mundo é cheio de arestas e em todo canto existe uma quina pronta para saltar sobre a sua canela. Por isso, continuo cultivando uma sábia burrice: mais triste que levar no lombo junto com os amigos, é ser feliz em má companhia.


é de quem não pegar

tanta coisa Deus dá
tonto fico observando
desisti de pegar

se dou-me uma folga pra pensar
esse muito que cai do céu
eu tento, mas não sei abraçar

cada sonho em seu lugar
Deus dá demais
fico com o que deixo passar

algo, se me cabe, gruda sem pesar
sobras, descansem em paz
amigos, nada a separar

(Roberto Prado)

sexta-feira, agosto 25, 2006

DO AUTO-ATRAPALHO À CULPA DOS OUTROS: A ARTE DE DAR ERRADO

De certo modo é reconfortante saber que o costume de dar com os burros n’água e ver a vaquinha brejeira atolada até o gorgomilo não é um problema pessoal, mas característica profunda da alma brasileira. Atire o primeiro projeto gorado aquele que dentre vós nunca fracassou. Por isso, não fique triste, não se zangue, sossegue o coração: esse tropismo ancestral para o infortúnio não é motivo de vergonha ou constrangimento. Não precisa discutir com a patroa, bater nos filhos e sair par aí atropelando velhinhas por uma coisinha à toa dessas. Sem escândalos e chiliques, por favor. Afinal, não é culpa de ninguém.

Fracassamos, sim, e daí? Talvez seja um resquício do carma coletivo pelos pecados da escravidão o que nos leva a achar razoável comprar uma kombi para puxar banana caturra de Antonina, empacotar farinha suruí de Guaraqueçaba, distribuir pinga com mel de Morretes. Quem sabe as atrocidades cometidas contra os paraguaios ainda atraiam espíritos vingativos que nos cochicham para investir em avestruz, plantar pupunha, abrir aquela pousada em Matinhos ou mais um bar em Curitiba. E essa pressa de enfrentar o muro com a cabeça, essa disposição de abrir caminho para o abismo, essa ânsia de esmurrar pontas de faca, essa vontade de pegar o touro à unha, essa coragem de passar a mão no traseiro do Mike Tyson – tudo isso não pode ser considerado também um grande fator de integração nacional?

Portanto, nada de ficar lamentando igual a um maricas. Você não é melhor do que ninguém por ter duas ou três firmas enroladas, pessoas jurídicas que, aliás, jamais sairão dos registros oficiais, pois está cientificamente comprovado que é impossível fechar uma empresa neste país. Se a paciência do Bush permitir e o mundo sobreviver, o seu tropeço ficará eternamente a engordar os números da nossa economia, alimentando as estatísticas e comprovando a espetacular habilidade dos governantes de plantão em sua santa tarefa de disseminar o espírito empreendedor. Chega de choramingos, isso aí é só mais um pouquinho de Brasil, iaiá.

E se o Brasil houvesse levado a Copa do Mundo pela sexta vez? Isso não teria sido uma ofensa à nação, espécie de humilhação coletiva, sucesso capaz de esmagar gente como a gente, que usa as pilhas de recibos e cartões das firmas falidas para anotar recados telefônicos e nivelar o pé do armário? Nada disso. Basta lembrar que os nossos clubes são tão perdedores que nenhum daqueles hoje apedrejados artistas da bola joga no time nosso ou no time teu - sequer moram no país do futebol.

E para que você fique totalmente reconfortado, saiba que o caneco mundial do empreendedorismo é verde e amarelo: são mais de 500 mil novos negócios abertos por ano. Recorde absoluto. Mas, como não deixamos por menos e queremos ser campeões em tudo, cerca de 450 mil dessas portas se fecham antes de completar 12 meses, marcadas pela asa do corvo, levadas no bico do urubu e arrastadas para as profundezas pelo tsunami constante dessa maré de azar. Sorte nossa: é nós na fita, é o Brasil na frente, é outra medalha de ouro para a coleção.

Devagarzinho, quase sem querer, socializamos o azar. Quando não chutamos direto na bandeirinha de escanteio, tudo sempre dá na trave para todos, indistintamente, pois ela é grossíssima, o gol é pequeno, o goleiro é imenso, a bola é quadrada e o gramado também não ajuda. Pobres e ricos, irmanados, estão fracassando e andando juntos por este país-continente. Os humildes querem ir dar banho em defunto no exterior, voltar com uma bela bolada e abrir a franquia estrangeira que estiver mais em conta. Os posudos esperam que, no último minuto da prorrogação, chegue aquela multinacional para injetar uma grana preta nas suas outrora prósperas marcas e, de xepa, sonham emplacar um emprego de executivo na ex-empresa, pois – não é nada, não é nada – ao menos aparece na televisão. A gringarada, mesmo sem entender direito o que se passa, compra tudo e ainda paga mais do que valemos. Pedem logo dois, um para comer no local, outro embrulhado para viagem. Lá de onde eles vêm ninguém gosta de ser chamado de “looser” – felizmente um termo sem tradução em português. Então, dão a maior força, que é para a gente não ficar na pior.

Agora, me desculpem, vocês são muito boa gente, o papo estava ótimo, mas eu tenho que resolver uns negócios, acertar com o contador, passar na prefeitura, tirar licença, comprar um carrinho, falar com o vereador, conseguir um ponto. Pois com essa minha idéia genial do cachorro-quente de três vinas não tem erro: é correr para o abraço. Ou para a fronteira do México.

(Roberto Prado - publicado originalmente na revista Idéias)

quarta-feira, agosto 16, 2006

Larguem mão: meninos, eu li.



Eis um texto que já nasceu milenar e deveria ser imprenso nos cadernos escolares, no lugar da letra do hino. Salve Fraga, que o concebeu e ave Solda, que o publicou. Largo mão e divido a pérola.


Ter – verbo intransitório.
(Fraga)
O dia descamba na praça. Hora de escambo: dou meu olhar, o sol me dá seu pôr. Raios aquarelados tingem as pessoas, etnia nova em torno de bolas. Jogos na quadra, eu no jirau do banco, julgando as gingas juvenis.

De repente, o homem e seu enferrujado carrinho de supermercado param por perto. Troco o alambrado pelo gradeado do carrinho. Através da trama de metal invado sua propriedade. Tudo o que tem na vida, à vista. Enquanto não me nota, catalogo o que cata: utensílios sem utilidade (para mim), velha valise valiosa (para ele), lataria, embalagens plásticas, e sacões e sacolas cheias de sacos cheios de saquinhos. Todo o seu tesouro. Amarrado às laterais, atrás, à frente, patrimônio incomensurável, além de irrespirável. O homem mexe, remexe, remelexe. Tudo exclusivo de seus gadanhos.

Esse proprietário do nada me inquieta. Automaticamente, meto as mãos nos meus poucos e próprios bolsos. Faço um balanço instantâneo de posses. E indagações se apossam de mim: o que possui esse desvairado? O que acumula alguém que nem razão tem mais? Diante dos meus olhos voltados para outros tempos, uma fila de insanos ajuntadores de trecos. Como nas ruas, se multiplicam na memória.

Reparo e separo bem: não são mendigos, papeleiros – não é a sobrevivência que move esses pirados. Desfilam para a minha incompreensão, todos firmemente agarrados a seus embrulhos, trouxas, caixas. Quasímodos com pacotes mal-feitos e desfeitos no menos cotidiano dos cotidianos. O que possuem tais mentes? Quanto carregam de seu, de si, para si? O que os impele a agregar mais e mais do menos? Tiro as mãos dos bolsos, vazias de sentido.

O homem do carrinho não olha o jogo, não olha nada nem ninguém. Se ocupa de sua tralha. Revira o revirado, de novo, e outra vez. Afrouxa e aperta nós; desfaz e refaz amarras, agitado sempre. Está atado ao que juntou. Protege seus bens com cordões que já foram coloridos, barbantes emendados, fios em frangalhos. Um dispensável desvelo protecionista, dada a desimportância da sua imunda riqueza para a rapinagem reinante ao redor. O homem apalpa cada saco, radar tátil a confirmar conteúdos, ri quando reconhece posses extraviadas no monturo móvel. Breve sossego: mão pousada num “meu”. A mão alça vôo, recomeça a busca. Estouram bolas no alambrado, ele não reage. Desplugados não se assustam.

Por que e para que somos donos? Sãos ou não, de quinquilharias nos enchemos, abarrotados de badulaques. Muletas luxuosas, bengalas miseráveis. Mais vultos assomam, sobrecarregados de pertences despossuídos por outros. E os sacos, os sacos, sacos e sacos, sacos e mais sacos. Os mais malucos entre os mais doidos varridos, os que não vêem o mundo que vemos, principalmente eles, não tinham, nunca, as mãos livres. Sobraçavam seus volumes em zelo animalesco, ciumento e temeroso, o possessivo elevado à irracionalidade. Que residual sentimento de posse perdura neles? Por que tal instinto prevalece enquanto ruíram os demais? E qual loucura enlouquece tanto a tantos mas nunca a ponto de desligar o mecanismo da mão possessiva na direçăo de quaisquer coisas?

A mão não pára, pendura sacos. Talvez os últimos ganchos enganchados na realidade. O homem do carrinho some enquanto penso no que tenho ou não tenho. No que tive e deixei de ter, no que quis ter e não consegui, no que pude e não quis ter. Rol imaterial maior que o rol material. As sombras catadoras saem da imaginaçăo. Desaparecem no lusco-fusco da praça. O jogo cessou, outras sombras apanham roupas, objetos, ninguém sai sem nada da quadra. Pego minha bolsa no banco e me vou. Dedos sem convicção sustêm a alça da minha lucidez.

(Texto do Fraga, emprestado do blog Solda Cáustico)

domingo, agosto 13, 2006

Um capítulo do Inspetor Geral

Eu, em concentração zen, lavando uma louça na casa da sobrinha Camila, pela lente do sobrinho Caetano. Foto capturada do blog do Solda, com link aí do lado.

Está circulando por aí, publicada pela Editora FTD, uma versão que fiz da peça O Inspetor Geral, do Nicolai Gógol, em forma narrativa (meio novela, meio romance, por aí). É parte da coleção Teatro em Prosa. Acompanhe, abaixo, um capítulo.


Reflexões à beira do abismo


Khlestakov, sozinho no quarto, aproveita para refletir. Afinal de contas, é nas horas difíceis que um homem deve ter força moral para avaliar a sua situação e crescer interiormente. “Mas que fome desgraçada!” Ele havia dado um passeio para ver se a monotonia da cidade e a visão do lixo nas ruas lhe tirariam o apetite. Mas não havia jeito. Se não fosse aquela maldita farra, teria dinheiro ao menos para voltar para casa.

“Onde é que errei, meu Deus.” E continuava a fazer sua corajosa autocrítica. Aquele capitão de infantaria tinha um estranho poder: era capaz de fazer o milagre da multiplicação dos ases. E ainda riu como um bárbaro, um verdadeiro animal, quando, em menos de 15 minutos, arrancou o couro de Khlestakov, praticamente o deixando pelado na sarjeta. Mesmo assim, o rapaz estava ávido por voltar a jogar com ele. Por azar, havia acabado justamente em Babuska. Uma cidadezinha chata, de gente que não quer vender fiado, um bando de canalhas que economiza até o tempo em que poderia ter alguma conversa interessante.

- É isso mesmo! Descobri! O meu grande defeito, o meu maior erro é ser um grande, um tremendo de um azarado.


Khlestakov não teve tempo para aprofundar ainda mais as suas reflexões, pois Ôssip voltava ao quarto, acompanhado, não pelo hoteleiro em pessoa, mas por um criado. Nada pior para seu amor próprio ferido.

Khlestakov se concentra. Nunca imaginou ter de buscar tantas forças para dobrar um simples serviçal. O criado do hotel, para você, que já conhece a nossa teoria (que tem por base a observação e a análise do comportamento dos lacaios), não precisaria nem ser descrito. Ele é o reflexo perfeito do seu patrão, o duro comerciante. De uma polidez gélida, seria capaz de enfrentar um desmoronamento sem tirar a toalha do braço ou demonstrar qualquer emoção.

Mas o patrãozinho não é lá essas coisas em relações humanas e parte para uma desesperada tentativa de conquista.

- Vem cá, meu irmãozinho, como é que vai essa força?

- Estou bem, obrigado. O patrão mandou perguntar o que o senhor deseja.

- E o hotel, como vai o movimento? Tudo certinho. E as gorjetas, generosas? Está tudo bem com o serviço?

- Tudo ótimo, tudo sob controle.

- Muitos hóspedes?

- Sim, bastante.

-Que ótima notícia, meu querido! E há muitas mulheres? Aposto que quando você passa pelos corredores todo mundo acorda com o barulho dos suspiros e dos coraçõezinhos batendo mais forte. É ou não é?

- Eu não compreendo, senhor...

- Certo, você é discreto, mas comigo pode se abrir, amigão. Todo mundo comenta que você é o maior conquistador desta cidade. Também, com esta postura e este perfil grego é até covardia. Fico imaginando o seu sucesso em São Petesburgo!

- Perdão senhor, mas o trabalho me espera.

- Nada demais, sem problemas. Por um esquecimento qualquer, que já está perdoado, não me trouxeram ainda o almoço. Mande vir, mas não demore, que já lá pelo meio da tarde tenho aí uns compromissos.


O criado simplesmente nem piscava. Repetia as palavras do seu patrão sem lhes dar nenhuma ênfase. Enfim, a comida não viria e além disso, o hoteleiro estava querendo se queixar ao governador.

- Queixar-se por quê. Ouça você, que tem o dom da inteligência. Meu querido, você compreende que eu preciso comer. Senão emagreço e posso até ficar doente, não é verdade? Pense bem e veja se não tenho razão...

- Eu entendo perfeitamente, senhor, mas o patrão disse: sem dinheiro, sem comida e ponto final.

- Viu? Analise estas palavras e verá que ele falou num momento de delírio. E só você pode fazê-lo recobrar a razão e voltar a raciocinar. Você conhece o caminho para convencê-lo, não é mesmo?

- O senhor quer que eu diga algo ao patrão? O que, exatamente?

- Nada demais, faça um apelo, em nome da lógica. De uma vez por todas. Ele tem de entender que eu preciso comer. Dinheiro é apenas dinheiro, é outro assunto, que agora não vem ao caso. A verdade é que o seu patrão, que veio da dura vida no campo, pensa que todos são capazes de sobreviver comendo apenas uma vez por semana. Mas eu não sou camponês, compreende? Ótimo. Então faça o seu patrão voltar à si.

Ôssip olhou assombrado para Khlestakov. Com que paixão ele havia feito aquela tentativa desesperada. Foi o blefe mais descarado que ele já havia testemunhado em sua longa carreira de espectador de jogatina, mas a verdade é que, de alguma maneira, funcionou. O criado do hotel resolveu falar com o seu chefe. Saíram os dois para o corredor. Mas o criado andava muito lentamente para a urgência da fome de Ôssip. Abraçou-se a ele.

- Vamos lá, rápido, rápido. Que moleza. Até parece que quem não almoçou aqui foi você...

(Trecho de O inspetor geral, de Nicolai Gógol, versão de Roberto Prado, editora FTD, SP)

terça-feira, agosto 08, 2006

Durmo logo acordo


canção do carneirinho

Adeus, elegante repetição,
salto sobre salto sempre certo.
Desculpe, sou mesmo um desastrado.
Desaprendi a arte de pular cercas
e hoje já não sirvo para fazer dormir.

Na hora de dar sono sou mero penetra,
outra ovelha preta, desgraçadamente a cair.
Mas dentro do sonho você me encontra,
conta comigo quando a coisa escurece
e os meus amiguinhos já não estão nem aí.



virado do avesso

ponha-se na sonolenta sina
do sonhador profissional
calcule-se sonhar acordado
e, ao dormir, virar seu avesso

imagine-se despertar na real
e perto do eterno recomeço
abra-se e venha de lá um abraço

agora sim, amigo, eu te reconheço