Um dia desses a revista Idéias publicou um texto meu que dizia mais ou menos assim:
Não estou inventando. Um dia desses eu pensei ou li em algum lugar que Curitiba, sempre que tem chance de aparecer na fotografia, simboliza a si mesma com imagens de parques, prédios públicos e obras viárias. Se não pensei, deveria ter pensado. E se li, deveria ter escrito antes, pois está na cara que nós, as pessoas, os atores, só servimos mesmo para atrapalhar este espetáculo produzido, escrito e dirigido por cenógrafos.
Alegria, alegria!
Pode virar cambota e dar pirueta à vontade. Aqui a plebe não tem tempo a perder com besteira. E a elite está muito ocupada mandando em você. No filme da cidade, fomos contratados como extras, orientados para não ficar na frente do cenário e limitados aos desafiantes papéis de passantes, populares e cidadãos genéricos. E lambam os dedos, pois os nossos chefes estão prestes a descobrir que, para isso, é mais negócio contratar um elenco em São Paulo.
O que é que o bahiano tem?
Parece exagero? Acha que eu inventei? Então faça o teste: procure algum anúncio oficial com o título ao menos próximo de “Curitiba, terra de Dalton Trevisan”, mande cópia e concorra a uma viagem com tudo pago para a maravilhosa terra de Jorge Amado.
Tubo de imagem queimado.
Agora, vamos calcular juntos e sem inventar moda: se nem mesmo os portentos da literatura, da arte, da ciência e do esporte servem como ícones de coisa alguma, imagine eu, você e o tal do povão. Nós todos, esse bando de pobres coitados que insiste em andar por aí enfeando a paisagem, não temos nem o direito sagrado de aparecer vendendo acarajé, batucando pandeiro, manobrando as velas do Mucuripe, tostando um boi no espeto, assando na praia ou comendo chineque no Centro Cívico.
Queimando o filme bonito.
Nossa principal função simbólica consiste em estrelar comerciais dos governantes dizendo variações da frase: “Ih, tá bem mió. Arresorveu. Coéssa obra gora tá mir di bão. Celente mesmo!”. E nada de invencionices. No final, devemos fazer um tímido sinal de positivo e sorrir amarelo. Nunca em close, claro, seria pedir demais, pois sabemos que é preciso dar destaque ao trator de esteira em primeiro plano, à perfeição da nova malha asfáltica e às dimensões do caminhão cegonheira que passa, simbolizando o tamanho da utilidade da obra. Feita com o dinheiro de quem? Dos extras.
Falta na entrada da área, quem vai bater?
E se tudo isso não fosse, como parece, uma grande sacanagem, mas, sim, a alta pedagogia de uma elite sábia, que assim evita nos estragar com elogios, mimos e carinhos? Esqueça: é sacanagem mesmo. E se você acredita no sofrimento como método de aprendizado, pode tirar o coitado do cavalinho do granizo: a necessidade, definitivamente, não é a mãe da invenção. Sofrer ensina a ser sofredor, necessidade ensina a ser necessitado. É científico. Ou você acha que o Rogério Ceni treina cobrança de falta descalço, chutando paralelepípedos, enquanto lhe passam a mão no traseiro e dão tapas na orelha “pra ficar esperto”? Então você dirá: esse rapaz não joga aqui, mas no São Paulo e o título deste post não é seu, mas de um compositor de Irará, no interior da Bahia. E eu serei obrigado a concordar. Pois agora você me pegou. E, pior, me pegou em flagrante, tentando inventar.
(Roberto Prado)