quarta-feira, agosto 16, 2006

Larguem mão: meninos, eu li.



Eis um texto que já nasceu milenar e deveria ser imprenso nos cadernos escolares, no lugar da letra do hino. Salve Fraga, que o concebeu e ave Solda, que o publicou. Largo mão e divido a pérola.


Ter – verbo intransitório.
(Fraga)
O dia descamba na praça. Hora de escambo: dou meu olhar, o sol me dá seu pôr. Raios aquarelados tingem as pessoas, etnia nova em torno de bolas. Jogos na quadra, eu no jirau do banco, julgando as gingas juvenis.

De repente, o homem e seu enferrujado carrinho de supermercado param por perto. Troco o alambrado pelo gradeado do carrinho. Através da trama de metal invado sua propriedade. Tudo o que tem na vida, à vista. Enquanto não me nota, catalogo o que cata: utensílios sem utilidade (para mim), velha valise valiosa (para ele), lataria, embalagens plásticas, e sacões e sacolas cheias de sacos cheios de saquinhos. Todo o seu tesouro. Amarrado às laterais, atrás, à frente, patrimônio incomensurável, além de irrespirável. O homem mexe, remexe, remelexe. Tudo exclusivo de seus gadanhos.

Esse proprietário do nada me inquieta. Automaticamente, meto as mãos nos meus poucos e próprios bolsos. Faço um balanço instantâneo de posses. E indagações se apossam de mim: o que possui esse desvairado? O que acumula alguém que nem razão tem mais? Diante dos meus olhos voltados para outros tempos, uma fila de insanos ajuntadores de trecos. Como nas ruas, se multiplicam na memória.

Reparo e separo bem: não são mendigos, papeleiros – não é a sobrevivência que move esses pirados. Desfilam para a minha incompreensão, todos firmemente agarrados a seus embrulhos, trouxas, caixas. Quasímodos com pacotes mal-feitos e desfeitos no menos cotidiano dos cotidianos. O que possuem tais mentes? Quanto carregam de seu, de si, para si? O que os impele a agregar mais e mais do menos? Tiro as mãos dos bolsos, vazias de sentido.

O homem do carrinho não olha o jogo, não olha nada nem ninguém. Se ocupa de sua tralha. Revira o revirado, de novo, e outra vez. Afrouxa e aperta nós; desfaz e refaz amarras, agitado sempre. Está atado ao que juntou. Protege seus bens com cordões que já foram coloridos, barbantes emendados, fios em frangalhos. Um dispensável desvelo protecionista, dada a desimportância da sua imunda riqueza para a rapinagem reinante ao redor. O homem apalpa cada saco, radar tátil a confirmar conteúdos, ri quando reconhece posses extraviadas no monturo móvel. Breve sossego: mão pousada num “meu”. A mão alça vôo, recomeça a busca. Estouram bolas no alambrado, ele não reage. Desplugados não se assustam.

Por que e para que somos donos? Sãos ou não, de quinquilharias nos enchemos, abarrotados de badulaques. Muletas luxuosas, bengalas miseráveis. Mais vultos assomam, sobrecarregados de pertences despossuídos por outros. E os sacos, os sacos, sacos e sacos, sacos e mais sacos. Os mais malucos entre os mais doidos varridos, os que não vêem o mundo que vemos, principalmente eles, não tinham, nunca, as mãos livres. Sobraçavam seus volumes em zelo animalesco, ciumento e temeroso, o possessivo elevado à irracionalidade. Que residual sentimento de posse perdura neles? Por que tal instinto prevalece enquanto ruíram os demais? E qual loucura enlouquece tanto a tantos mas nunca a ponto de desligar o mecanismo da mão possessiva na direçăo de quaisquer coisas?

A mão não pára, pendura sacos. Talvez os últimos ganchos enganchados na realidade. O homem do carrinho some enquanto penso no que tenho ou não tenho. No que tive e deixei de ter, no que quis ter e não consegui, no que pude e não quis ter. Rol imaterial maior que o rol material. As sombras catadoras saem da imaginaçăo. Desaparecem no lusco-fusco da praça. O jogo cessou, outras sombras apanham roupas, objetos, ninguém sai sem nada da quadra. Pego minha bolsa no banco e me vou. Dedos sem convicção sustêm a alça da minha lucidez.

(Texto do Fraga, emprestado do blog Solda Cáustico)

domingo, agosto 13, 2006

Um capítulo do Inspetor Geral

Eu, em concentração zen, lavando uma louça na casa da sobrinha Camila, pela lente do sobrinho Caetano. Foto capturada do blog do Solda, com link aí do lado.

Está circulando por aí, publicada pela Editora FTD, uma versão que fiz da peça O Inspetor Geral, do Nicolai Gógol, em forma narrativa (meio novela, meio romance, por aí). É parte da coleção Teatro em Prosa. Acompanhe, abaixo, um capítulo.


Reflexões à beira do abismo


Khlestakov, sozinho no quarto, aproveita para refletir. Afinal de contas, é nas horas difíceis que um homem deve ter força moral para avaliar a sua situação e crescer interiormente. “Mas que fome desgraçada!” Ele havia dado um passeio para ver se a monotonia da cidade e a visão do lixo nas ruas lhe tirariam o apetite. Mas não havia jeito. Se não fosse aquela maldita farra, teria dinheiro ao menos para voltar para casa.

“Onde é que errei, meu Deus.” E continuava a fazer sua corajosa autocrítica. Aquele capitão de infantaria tinha um estranho poder: era capaz de fazer o milagre da multiplicação dos ases. E ainda riu como um bárbaro, um verdadeiro animal, quando, em menos de 15 minutos, arrancou o couro de Khlestakov, praticamente o deixando pelado na sarjeta. Mesmo assim, o rapaz estava ávido por voltar a jogar com ele. Por azar, havia acabado justamente em Babuska. Uma cidadezinha chata, de gente que não quer vender fiado, um bando de canalhas que economiza até o tempo em que poderia ter alguma conversa interessante.

- É isso mesmo! Descobri! O meu grande defeito, o meu maior erro é ser um grande, um tremendo de um azarado.


Khlestakov não teve tempo para aprofundar ainda mais as suas reflexões, pois Ôssip voltava ao quarto, acompanhado, não pelo hoteleiro em pessoa, mas por um criado. Nada pior para seu amor próprio ferido.

Khlestakov se concentra. Nunca imaginou ter de buscar tantas forças para dobrar um simples serviçal. O criado do hotel, para você, que já conhece a nossa teoria (que tem por base a observação e a análise do comportamento dos lacaios), não precisaria nem ser descrito. Ele é o reflexo perfeito do seu patrão, o duro comerciante. De uma polidez gélida, seria capaz de enfrentar um desmoronamento sem tirar a toalha do braço ou demonstrar qualquer emoção.

Mas o patrãozinho não é lá essas coisas em relações humanas e parte para uma desesperada tentativa de conquista.

- Vem cá, meu irmãozinho, como é que vai essa força?

- Estou bem, obrigado. O patrão mandou perguntar o que o senhor deseja.

- E o hotel, como vai o movimento? Tudo certinho. E as gorjetas, generosas? Está tudo bem com o serviço?

- Tudo ótimo, tudo sob controle.

- Muitos hóspedes?

- Sim, bastante.

-Que ótima notícia, meu querido! E há muitas mulheres? Aposto que quando você passa pelos corredores todo mundo acorda com o barulho dos suspiros e dos coraçõezinhos batendo mais forte. É ou não é?

- Eu não compreendo, senhor...

- Certo, você é discreto, mas comigo pode se abrir, amigão. Todo mundo comenta que você é o maior conquistador desta cidade. Também, com esta postura e este perfil grego é até covardia. Fico imaginando o seu sucesso em São Petesburgo!

- Perdão senhor, mas o trabalho me espera.

- Nada demais, sem problemas. Por um esquecimento qualquer, que já está perdoado, não me trouxeram ainda o almoço. Mande vir, mas não demore, que já lá pelo meio da tarde tenho aí uns compromissos.


O criado simplesmente nem piscava. Repetia as palavras do seu patrão sem lhes dar nenhuma ênfase. Enfim, a comida não viria e além disso, o hoteleiro estava querendo se queixar ao governador.

- Queixar-se por quê. Ouça você, que tem o dom da inteligência. Meu querido, você compreende que eu preciso comer. Senão emagreço e posso até ficar doente, não é verdade? Pense bem e veja se não tenho razão...

- Eu entendo perfeitamente, senhor, mas o patrão disse: sem dinheiro, sem comida e ponto final.

- Viu? Analise estas palavras e verá que ele falou num momento de delírio. E só você pode fazê-lo recobrar a razão e voltar a raciocinar. Você conhece o caminho para convencê-lo, não é mesmo?

- O senhor quer que eu diga algo ao patrão? O que, exatamente?

- Nada demais, faça um apelo, em nome da lógica. De uma vez por todas. Ele tem de entender que eu preciso comer. Dinheiro é apenas dinheiro, é outro assunto, que agora não vem ao caso. A verdade é que o seu patrão, que veio da dura vida no campo, pensa que todos são capazes de sobreviver comendo apenas uma vez por semana. Mas eu não sou camponês, compreende? Ótimo. Então faça o seu patrão voltar à si.

Ôssip olhou assombrado para Khlestakov. Com que paixão ele havia feito aquela tentativa desesperada. Foi o blefe mais descarado que ele já havia testemunhado em sua longa carreira de espectador de jogatina, mas a verdade é que, de alguma maneira, funcionou. O criado do hotel resolveu falar com o seu chefe. Saíram os dois para o corredor. Mas o criado andava muito lentamente para a urgência da fome de Ôssip. Abraçou-se a ele.

- Vamos lá, rápido, rápido. Que moleza. Até parece que quem não almoçou aqui foi você...

(Trecho de O inspetor geral, de Nicolai Gógol, versão de Roberto Prado, editora FTD, SP)