Li Po, poeta chinês, deixou um dos primeiros registros históricos de poema de louvor à embriaguez. Algo assim:
Traga o vinho
Veja: as águas do rio caem do céu,
vão para o oceano e voltam de um jeito ou de outro.
Veja: as madeixas lindas nos espelhos límpidos,
negras pela manhã, brancas de neve à noite.
Deixe um homem de espírito atrever-se a ir onde lhe agrada.
E nunca erga sua taça vazia para a lua.
Já que o céu deu o talento, deixe-me usá-lo.
Faça um teste: rode milhares de moedas de prata
e repare como todas elas voltarão para você.
Asse o carneiro, carneie o boi, aguce o apetite
e prepare para mim, com trocentos copos, uma longa bebida.
Para o velho mestre e o jovem que promete, traga o vinho!
Que sua taça nunca descanse.
Deixe eu cantar uma canção para você.
Que seus ouvidos me ouçam.
O que são o violão e o tamborim, raros pratos e tesouros?
Deixe-me ficar bambo para sempre e nunca mais voltar à razão.
Esquecidos os homens sábios e sóbrios de antigamente
somente os grandes bebedores merecerão a glória eterna.
Reza aquela lenda: o príncipe Ch’en em tempos idos
pagou num banquete no Palácio da Perfeição
dez mil moedas de ouro por um barril com muitos risos e pilhérias.
Então por que dizer, meu bom anfitrião, que o seu dinheiro se foi?
Saia, traga o vinho e nós o beberemos juntos.
Meu cavalo sangue puro e seus enfeites de diamante,
minhas peles raras que valem milhões,
entregue tudo ao rapaz e traga o vinho
para afogarmos as mágoas de dez mil gerações.
Li Po
É preciso ficar bem claro que não estou aqui fazendo comercial de bebida ou dando força para que alguém tome caipirinha de raiz de capim. Aliás, eu nem bebo. Não que uma coisa ou outra tenha importância. Aliás, o apaixonado e lírico
Li Po era contemporâneo, amigo e defensor do quase monge poeta - e abstêmio -
Tu Fu. Dividiram as torcidas, mas nunca deixaram que as conversas de lavadeiras da corte chinesa interferisse no respeito e admiração que tinham pela obra um do outro. Uma lição de sabedoria que muitos poetas atuais poderiam praticar, para o bem dos nossos ouvidos e das suas reputações. A obra dos dois atravessou os milênios assim como também ficou na memória e chegou até nós as definições que o povão chinês fez a respeito deles:
Li Po, o poeta feiticeiro e
Tu Fu, o poeta sábio.
Lembrei agora dessa pequena obra prima de uma dupla que soube pegar em flagrante e eternizar um simples freqüentador de bar de uma periferia qualquer:
o velho e o bar
o velhinho é a alma do negócio
deixa a nota amassada
e sai catando cavaco
pensou que via o carlos drummond de andrade
mas era uma valeta no meio do caminho
o pau d’água mergulhou na areia movediça
transformando-se no monstro do pântano
Marcos Prado e Márcio Cobaia GoedertArtes e mágicas da poesia que, bêbado ou sóbrio, só quem sabe ver viverá.