quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Estamos nesse mundo de passagem


De dentro para fora: Nelson Cavaquinho observa a Mangueira.



De fora para dentro: Mangueira observa Nelson Cavaquinho.


Quando o ano chega nestas épocas, lembro que muita gente não sabe separar o samba-samba, a instituição, com o samba-carnaval, uma das suas vertentes.

"Todos têm o direito
De sorrir neste mundo

Só eu choro porque

Sou um rei vagabundo."

Algo como um norte-americano confundir o som do Lou Reed com o de uma dessas bandas especializadas em mega-concertos carnavalescos.

"Noites eu varei
Mas cada amor me fez um rei

Um rei vadio

Um poeta tão sem lei"

Aí me lembrei de um texto que escrevi junto com o Thadeu para o encarte de um CD do Maxixe Machine, o Barbabel.

"Quando eu ouço
As badaladas do sino
daquela igrejinha

Julgo-me ainda feliz
E que és toda minha

E quando vejo
a torre bem alta

Daquela linda catedral
Fujo da tua amizade infernal"

Um breve ensaio que fala de samba, de poesia e de carnaval (ou a ausência dele). E acabou ficando bem divertido. E quem ainda não conhece o Barbabel, corra. Por enquanto, leia o texto:

Os Acadêmicos da Sapolândia

De repente o tal do Luís Américo nos dá o X da questão

“Vou dar bolacha

em quem mexer com a minha nega

já dei colher de chá,

agora chega”.

O povão é louco mesmo. Do brejo das almas salta uma tessitura de ecos e ressonâncias, sambando a la John Donne

“cuidais que são e não são

homens que não vão nem vêm

parece que avante vão

entre doente e o são

mente a cada hora a espia

na meta do meio-dia

andais entre o lobo e o cão”.

Pérolas bóiam na lavagem atirada aos porcos da mídia, puro deleite, entortando a gramática, bagunçando a lógica (ouvide Adoniram), nos apaixonando

“pela dona do 1º andar”.

Mas

eu já disse a você

que malandro demais

vira bicho”

por isso não confunda com vanguardismo. Já no século XVII, Gregório de Matos misturava coisas de todos os povos que por aqui saqueavam e andavam

“pés de puas com topes de seda

cabelos de cabra com pós de marfim

pés e puas de riso motivo

cabelos e topes motivos de rir”.

Ouça os fonemas oclusivos bilabiais (P – surdo- e B – sonoro), nos linguodentais (T – surdo- e D – sonoro), e no velar C – surdo - formando os pares aliterativos. Quero morrer na cadência bonita do samba. Augusto dos Anjos, poeta singular, em Gemidos da Arte, faz as letras A e R voarem

“Um pássaro, alvo artífice da teia

de um ninho, salta, no árdego trabalho

de árvore em árvore e de galho em galho,

com a rapidez duma semicolcheia.

Por outro mesmo lado, Cruz e Sousa imporia ritmo forte, frenético e penetrante no soneto Acrobata da Dor

“Da gargalhada atroz, sanguinolenta,

agita os guizos, e convulsionado

salta, gavroche, salta clown, varado

pelo estertor dessa agonia lenta.”

O mestre negro ensinou nossos brancos a amar Baudelaire e Edgar Poe. Em Noel Rosa, o pulo inverso: um branco ensina nossos negros que

batuque é um privilégio”.

A doida brasileirice ecoa nas marchinhas, onde o espaçotempo desintegra a realidade

ô abre alas que eu quero passar”,

mamãe eu quero mamar”,

alalaô ô ô, mas que calor ô ô”.

Momo hoje perdeu graça, graças à reciclagem mecânica do que já está na parada. Kojak devia meter bronca nesta moçada, junto com o kung fu, chinês valente, homem pra chuchu. Mas não importa, afinal, carnaval é um bando de dedo pra cima, fantasiado de turista. Samba é de outros carnavais.


O the best do tempestuoso carnaval curitibano não é música, batuque, dança, alegoria e, sim, o glorioso nome de uma escola: Acadêmicos da Sapolândia, onde sílabas pulam animadamente. O solitário sambista de Curitiba é tão inédito que nem nós, que somos nós, conhecemos o Lápis. Luiz Carlos Paraná fez nascer Maria quando a folia, mas as mocinhas da cidade pensam que é filha do Roberto Carlos. Fazer o que, se é aqui

“onde moro que me sinto bem”?

Pois somente aqui,

onde ela mora”, e "a avenida tem fim"


demora essa sonoridade

“eu nunca tive pinta de eunuco

nem de voyeur do teu balacobaco

meu passarinho saiu do teu relógio cuco

você deixou meu coração batendo fraco”.


Pra terminar, uma pergunta: ouvidos novos ouvem ou vêem os sons que vêm e botam ovos?


(Roberto Prado e Antonio Thadeu Wojciechowski)

2 comentários:

polacodabarreirinha disse...

Pô, Becão, vc esqueceu dos nossos inenarráveis sambas carnavalescos.
Tá certo, samba de polaco já vem cos quadril no gesso.

se arrependimento matasse eu não sofria/ e antes da primeira noite eu raiava o dia

Abração

Thadeu

Roberto Prado disse...

Thadeu, eu sou totalmente incapaz de esquecer as coisas boas da vida. Se não falei das inenarráveis marchinhas é porque queria justamente aproveitar a ocasião dos 20 anos da morte do Nelson para destacar o samba fora do contexto da "sufocante epidemia", como o Chico Buarque definiu o carnaval. Na ocasião azada, prometo fazê-lo, bicho. E é meio pra já: ei, você aí, ouça já o CD Folias de Momo, do Maxixe Machine, para fazer um carnaval que vai bem além das cinzas.

Obrigadão, Careqa. Imaginei a coisa assim mesmo, em três segmentos. 1) Se a pessoa quiser ler apenas o poema foto + frases, beleza. Tudo começou quando achei as fotos, em sítios e dias diversos. 2) Se o cristão quiser ir adiante e (re)ver alguns versinhos do Nelson e Cia, tudo bem. 3) E, se o cidadão desejar ir além, que leia também o texto que eu e o Thadeu do CD do Maxixe. Também fiquei emocionado, pensando nesse e em outros nelsons, nessa e em outras mangueiras da vida.
Abração.