domingo, agosto 13, 2006

Um capítulo do Inspetor Geral

Eu, em concentração zen, lavando uma louça na casa da sobrinha Camila, pela lente do sobrinho Caetano. Foto capturada do blog do Solda, com link aí do lado.

Está circulando por aí, publicada pela Editora FTD, uma versão que fiz da peça O Inspetor Geral, do Nicolai Gógol, em forma narrativa (meio novela, meio romance, por aí). É parte da coleção Teatro em Prosa. Acompanhe, abaixo, um capítulo.


Reflexões à beira do abismo


Khlestakov, sozinho no quarto, aproveita para refletir. Afinal de contas, é nas horas difíceis que um homem deve ter força moral para avaliar a sua situação e crescer interiormente. “Mas que fome desgraçada!” Ele havia dado um passeio para ver se a monotonia da cidade e a visão do lixo nas ruas lhe tirariam o apetite. Mas não havia jeito. Se não fosse aquela maldita farra, teria dinheiro ao menos para voltar para casa.

“Onde é que errei, meu Deus.” E continuava a fazer sua corajosa autocrítica. Aquele capitão de infantaria tinha um estranho poder: era capaz de fazer o milagre da multiplicação dos ases. E ainda riu como um bárbaro, um verdadeiro animal, quando, em menos de 15 minutos, arrancou o couro de Khlestakov, praticamente o deixando pelado na sarjeta. Mesmo assim, o rapaz estava ávido por voltar a jogar com ele. Por azar, havia acabado justamente em Babuska. Uma cidadezinha chata, de gente que não quer vender fiado, um bando de canalhas que economiza até o tempo em que poderia ter alguma conversa interessante.

- É isso mesmo! Descobri! O meu grande defeito, o meu maior erro é ser um grande, um tremendo de um azarado.


Khlestakov não teve tempo para aprofundar ainda mais as suas reflexões, pois Ôssip voltava ao quarto, acompanhado, não pelo hoteleiro em pessoa, mas por um criado. Nada pior para seu amor próprio ferido.

Khlestakov se concentra. Nunca imaginou ter de buscar tantas forças para dobrar um simples serviçal. O criado do hotel, para você, que já conhece a nossa teoria (que tem por base a observação e a análise do comportamento dos lacaios), não precisaria nem ser descrito. Ele é o reflexo perfeito do seu patrão, o duro comerciante. De uma polidez gélida, seria capaz de enfrentar um desmoronamento sem tirar a toalha do braço ou demonstrar qualquer emoção.

Mas o patrãozinho não é lá essas coisas em relações humanas e parte para uma desesperada tentativa de conquista.

- Vem cá, meu irmãozinho, como é que vai essa força?

- Estou bem, obrigado. O patrão mandou perguntar o que o senhor deseja.

- E o hotel, como vai o movimento? Tudo certinho. E as gorjetas, generosas? Está tudo bem com o serviço?

- Tudo ótimo, tudo sob controle.

- Muitos hóspedes?

- Sim, bastante.

-Que ótima notícia, meu querido! E há muitas mulheres? Aposto que quando você passa pelos corredores todo mundo acorda com o barulho dos suspiros e dos coraçõezinhos batendo mais forte. É ou não é?

- Eu não compreendo, senhor...

- Certo, você é discreto, mas comigo pode se abrir, amigão. Todo mundo comenta que você é o maior conquistador desta cidade. Também, com esta postura e este perfil grego é até covardia. Fico imaginando o seu sucesso em São Petesburgo!

- Perdão senhor, mas o trabalho me espera.

- Nada demais, sem problemas. Por um esquecimento qualquer, que já está perdoado, não me trouxeram ainda o almoço. Mande vir, mas não demore, que já lá pelo meio da tarde tenho aí uns compromissos.


O criado simplesmente nem piscava. Repetia as palavras do seu patrão sem lhes dar nenhuma ênfase. Enfim, a comida não viria e além disso, o hoteleiro estava querendo se queixar ao governador.

- Queixar-se por quê. Ouça você, que tem o dom da inteligência. Meu querido, você compreende que eu preciso comer. Senão emagreço e posso até ficar doente, não é verdade? Pense bem e veja se não tenho razão...

- Eu entendo perfeitamente, senhor, mas o patrão disse: sem dinheiro, sem comida e ponto final.

- Viu? Analise estas palavras e verá que ele falou num momento de delírio. E só você pode fazê-lo recobrar a razão e voltar a raciocinar. Você conhece o caminho para convencê-lo, não é mesmo?

- O senhor quer que eu diga algo ao patrão? O que, exatamente?

- Nada demais, faça um apelo, em nome da lógica. De uma vez por todas. Ele tem de entender que eu preciso comer. Dinheiro é apenas dinheiro, é outro assunto, que agora não vem ao caso. A verdade é que o seu patrão, que veio da dura vida no campo, pensa que todos são capazes de sobreviver comendo apenas uma vez por semana. Mas eu não sou camponês, compreende? Ótimo. Então faça o seu patrão voltar à si.

Ôssip olhou assombrado para Khlestakov. Com que paixão ele havia feito aquela tentativa desesperada. Foi o blefe mais descarado que ele já havia testemunhado em sua longa carreira de espectador de jogatina, mas a verdade é que, de alguma maneira, funcionou. O criado do hotel resolveu falar com o seu chefe. Saíram os dois para o corredor. Mas o criado andava muito lentamente para a urgência da fome de Ôssip. Abraçou-se a ele.

- Vamos lá, rápido, rápido. Que moleza. Até parece que quem não almoçou aqui foi você...

(Trecho de O inspetor geral, de Nicolai Gógol, versão de Roberto Prado, editora FTD, SP)

6 comentários:

Unknown disse...

Quem não leu tua versão, Beco, não sabe o que está perdendo. É simplesmente genial.

Ligia K disse...

Eu também não canso de recomendar. Bjs.

Anônimo disse...

azes?

Roberto Prado disse...

É "ases", claro.
Eu é que sou um ás no volante.
Mas já está devidamente corrigido.
Gracias, anônimo(a)... quem?

Anônimo disse...

Caro Beco
Fiquei em dúvida porque existe a palavra "AZ", termo militar que indica uma formação de batalha. E como tem um capitão na jogada...
Abraço,
Renato.

Roberto Prado disse...

Renato, essa eu não conhecia. O meu caso foi de excesso de letrinhas mesmo. Como eu não tinha a cópia em doc da versão final do texto, eu fui copiando direto do livroe nesta batalha, sofri o ataque de malditos azes!