quinta-feira, dezembro 21, 2006

Eu e a guerra de símios

Aí, macacada: o número 54 da revista Idéias, da Travessa dos Editores, saiu com esse texto, que versa, entre outras coisas, da minha reconhecida incompetência na arte do arremesso de fezes. E já tem outro engatilhado, para o número 56, com o singelo título de "Lamentações de um coitadinho subtropical", que deve estourar semana que vem nas bancas. Vejam lá.




Apela para a ignorância
o ser de alma macaca


Eu estava matutando cá com meus botões. Mas, como a roupa que uso não tem botão coisa nenhuma, garrei a imaginar se não somos todos um pouco responsáveis pela preservação das obras geniais que cruzam nosso caminho, tanto quanto pelo ar, pela água, pelas plantas, pelos bichos. Confesso a você – e peço que espalhe – que senti um tantinho de culpa ao verificar a degradação do habitat literário, a imundície jogada na terceira margem do rio, a asfixiante psicosfera que paira sobre a nação zumbi. O frágil ecossistema intelectual nativo virou atoleiro e, nesse brejo das almas, é natural que os tímidos pandas se recolham à sua extinção e os mosquitos da malária reinem absolutos. A gente deste século, assombrada, vê as últimas reservas cercadas de símios, esses sim, sempre dispostos a bater no peito, arremessar fezes e urinar nos cantos para demarcar seus territórios.

Agora chega desta ladainha: vamos empunhar as bordunas do espírito e defender a biodiversidade humana. Com muito respeito, é claro, pois sem ele você morre atropelado pelo carrinho de sorveteiro - como nos ensinou Nelson Rodrigues. Para começo de conversa, fim de papo, como disse o Marcos Prado: se eu, que sou eu, de vez em quando coloca um pouco de oxigênio nesta mistura, você, que é muito mais esperto, certamente será capaz de colocar muito mais. A primeira lufada de ar fresco, perfumado de araucária, eu mandei vir do Jamil Snege: “Já inspecionei a proa, / amarrei a carga, / desatei a vela. / O vento sopra forte / e enfuna meu coração de alegria. / Agora é contigo, Senhor. / Toma o leme / e risca o rumo do meu barco / - não penses que irei por este mar sozinho.” E de Minas Gerais, para as emergências asmáticas da vida, carrego sempre comigo uma bombinha de Affonso Ávila e o ar de sua graça: “dentro da faixa / fora do perigo / dentro da fauna / fora do perigo / dentro da farsa / fora do perigo / dentro do falso / fora do perigo / dentro do fácil / fora do perigo.” No meio do caminho tinha um Bertolt Brecht e com ele, respirando fundo, a gente aprende que o Brasil é lá e a Alemanha é aqui: “Sento na beira da estrada / Enquanto o motorista troca a roda. / Não gosto do lugar de onde venho. / Não gosto do lugar para onde vou. / Então por que espero essa troca de roda / Com tanta impaciência?” Você, que conhece a alma humana, já deve imaginar que, na maior tempestade, esse alemão um dia acabaria dizendo algo assim: “Fora essa estrelinha apagada, pensei, / Não temos nada / E ela está toda suja e devastada / Ela é nossa casa, / Nossa única casa / E olhe só o estado da coitada.” Da água corrente de uma montanha do Japão veio o Kobayashi Issa, para refrescar nossa pobre alminha com coisas como “o mendigo olha / e reconhecendo-me / devolve a esmola “ e molhar nossos olhos com uma alegria quase extinta: “a neve mexe / no calor das crianças / a aldeia se derrete”.

Bem, isso já é um começo. Agora é com você. Mas eu já vou avisando que participar dessa cruzada pela melhoria da atmosfera mental do país é arrumar para a cabecinha e encarar a ira da massa ensandecida (procedimento que eu sugiro seja realizado com bom humor, malícia e precisão). Portanto, nada de reclamações. A batalha é inglória para quem procura sarna para coçar, chifre em cavalo, cabelo em ovo – coisas que, muitas vezes, achará. Mas, em plena desgrama, garanto que, de vez em quando, ouvirá o Domingos Pellegrini, direto do seu sítio: “Cadê os chinelos / aquele sonho cadê / vou procurar de joelhos / assim já estou pronto para agradecer.”

Leia, espalhe e preserve o que é bom. Numa dessas você encontra por aí, soprando com o vento pelas ruas de Curitiba, os mestres Marcos Prado e Márcio Cobaia Goedert no exato momento em que flagaram e eternizaram um simples freqüentador da birosca de uma periferia qualquer: “o velho e o bar // o velhinho é a alma do negócio / deixa a nota amassada e sai catando cavaco / pensou que via o carlos drummond de andrade / mas era uma valeta no meio do caminho / o pau d’água mergulhou na areia movediça / transformando-se no monstro do pântano”.

E mais não digo, pois os meus botões preferiram guardar a boca pra comer farinha.


(Roberto Prado)


Notas:
1) “Apela para a ignorância o ser de alma macaca” - verso emprestado do poema “Todos os lugares a deus” de Marcos Prado e Antonio Thadeu Wojciechowski. 2) Poemas de Bertolt Brecht – versão brasileira: Roberto Prado. 3)
Poemas de Kobayashi Issa – versão brasileira: Roberto Prado e Antonio Thadeu Wojciechowski

3 comentários:

Anônimo disse...

Háháháhá, Bequinho, genial teu texto e as citações,
gostei dimai da conta da do Marcos e do Cobaia e
da do Domingos Pellegrini.

Aproveito e te mando um poema de William Carlos Williams, ( traduzido pelo José Paulo Paes),que
como escreveu o Ruy Goiaba no seu blog,
www.puragoiaba.apostos.com/

é "um contraponto mais otimista à pedra do Drummond"

Beijos
Iara

Uma espécie de canção
William Carlos Williams

Que a cobra fique a espera sob
suas ervas daninhas
e que a escrita se faça de palavras,
lentas e prontas, rápidas
no ataque, quietas na tocaia,
sem jamais dormir.

- pela metáfora reconciliar
as pessoas e as pedras.
Compor (idéias
só nas coisas) inventar!
Saxífraga é a minha flor que fende
as rochas.

Tradução José Paulo Paes

Roberto Prado disse...

Iara eu (lembra do poema do Walter Franco que começa assim?)

Jóia que você gostou.

E obrigado pelo poema. Idéias só nas coisas é duca.

Aliás, só o nome deste poeta já é um poema!

Beijão!

Anônimo disse...

Beco eu ( lembro do poema sim);-)

Gostei muito de tudo, que bom que você gostou
do poema do William Carlos Williams, hehehe, realmente
o nome do poeta é interessante...;-)

Beijos
Iara