Do texto do Jamil Snege que publiquei mais abaixo derivou um inspirado poema de Ivan, o Belo, ou, para os íntimos, Professor Doutor Ivan Justen Santana, cuja multicolorida alma poliglota, em carne e osso, habita entre nós. Quem quiser mais tem o link ao lado.
JAMIL SNEGE
Quem soube revelar esta alma bege que o "bom" curitibano elege e rege (e fá-lo recusar-se a fazer frege) foi, num tempo sujo, um "mau elemento" cujo nome o vil, o tolo e o nojento não ouviram: chama-se Jamil Snege.
Você pode começar treinando numa dessas manhãs de muita neblina, à margem de um lago ou num bairro bem afastado do centro da cidade. Pode optar por uma rua deserta, no começo da noite ou numa véspera de feriado. Pode vestir um uniforme camuflado ou levar o seu "personal trainer" a tiracolo, pouco importa. Esteja você com a síndrome do pânico ou com o coração amargurado, existe um método muito mais eficiente para tornar-se invisível em Curitiba do que essas deambulações (sic) pelos ermos da cidade. Embora não esteja ao alcance de todos, convém conhecê-lo, já que é absolutamente infalível e seus resultados surpreendentes. Primeira condição: você precisa ter talento genuíno. Estudar bastante também ajuda, mas não substitui aquele toque de gênio inconfundível que marca e distingue certas pessoas desde o berço. Pois bem. De posse desse talento que Deus lhe deu – e contra a falta de estímulo da família, do meio e particularmente da própria cidade – você deve se atirar de corpo e alma na consecução de seu destino. Guiado unicamente pelo seu daimon, pelo seu anjo tutelar, você dará início à construção de sua lenda pessoal e dos projetos que dela advirão. Você estará, finalmente, a caminho de tornar-se invisível. Cada conquista, cada livro publicado, cada poema, escultura ou canção, cada tela, espetáculo, disco, filme ou fotografia, cada intervenção bem sucedida no esporte, no direito ou na medicina, cada vez que alguém, lá fora, reconhecer com isenção de ânimo que você está produzindo obra ou feito significativo – o seu grau de invisibilidade aumenta em Curitiba. E é muito fácil perceber isso. Primeiro, não faltarão pessoas tentando dissuadi-lo de seu próprio talento. Tudo farão para reconduzi-lo de volta à mediania, ou melhor, à mediocracia, que é o sistema vigente nesse estrato a que denominamos cultura. Se você resistir, tentarão cooptá-lo com promessas de nomeações ou ofertas de emprego em atividades sucedâneas. Se você é um belo projeto de escritor, alguém tentará convencê-lo de que é melhor, mais lucrativo, ser um redator de propaganda. Se você é jovem e promissor cirurgião plástico, com projetos de especialização no exterior, não faltará quem o convide para sócio de uma dessas empresinhas de medicina privada lá onde o diabo perdeu as botas. Se mesmo assim você se mantiver fiel ao seu daimon, à sua lenda pessoal e não arredar pé de seu destino, a invisibilidade torna-se então um processo irreversível. Os amigos mais chegados são os primeiros a acusar falhas em seus sistemas de radar quando o objeto a ser captado é você ou algo que lhe diz respeito. Os convites tornam-se mais escassos, o telefone já não toca como antigamente; e mencionar seu nome ou seus feitos, nas reuniões para as quais você não foi convidado, passará (sic) a ser tomado como um gesto de imperdoável traição ao grupo. Desse momento em diante, só os inimigos falarão de você. Falarão mal, obviamente. E o mais curioso: à maioria desses "inimigos", a noventa por cento deles, você jamais falou, jamais sequer foi apresentado. Os amigos a gente escolhe, os inimigos escolhem-se a si próprios. Esta talvez seja a parte mais cruel (ou mais irônica) da história. A sua visibilidade, enquanto pessoa, transfere-se para a imagem que os outros fazem de você. Pois é ela, a sua imagem, que circula e passa a freqüentar os lugares para os quais você já não é solicitado. Não é mais você em pessoa – carne, sistema nervoso, personalidade, alma –, que se oferece à percepção do outro, mas uma espécie de correlato simbólico impregnado de tudo o que os outros lhe atribuem. Para encurtar: vale a pena manter-se fiel ao seu daimon e cumprir com resignação cada etapa de sua lenda pessoal? Acho que sim. Curitiba está cheia de pessoas invisíveis.
QUADRO DA IARA TEIXEIRA - Não vendo de jeito nem maneira
Este quadro das fotos, da Iara Teixeira, me acompanha desde 1993. Não adianta arranhar a porta que não tem negócio. Se um museu quiser, só construindo o museu em torno da minha sala.
Sou burro, mas metido a besta. Por isso, fiz questão de capturar do blog Solda Cáustico esta maravilha do Fraga, um escritor que insiste em nos tratar a pão-de-ló. Leiam e lembrem da frase do Millor Fernandes: - No tempo em que os animais falavam não davam coice. (Roberto Prado)
ASNEIRA
Outro dia quase fiz uma asneira. Pensei em alguns muares e nas subcondições em que vivem. Aí imaginei fazer uma asneira das grandes, em que coubessem vários asnos. Pensei em tudo: listei o material necessário para a asneira, elaborei um croquis em perspectiva e incluí até uma estimativa de custos.
Logo vi que a minha asneira seria das maiores. A começar que sua estrutura não ia caber na planta baixa do meu apartamento. E ia dar um trabalhão levar as toras de eucalipto até o andar alto onde moro. Mão-de-obra também não está fácil: apesar de tanta gente fazer asneira hoje em dia, eu queria uma bem feita, sob medida para a sala, onde os asnos se sentissem em casa.
Outro dos problemas foi que o condomínio reagiu mal à minha asneira. Impediu que os três animais subissem no elevador (eles também empacaram na escadaria de entrada). Foi tanta complicação por causa de uma asneira que tive de desistir. Como sou teimoso, logo planejei outra coisa, uma besteira completa. Para meia dúzia de bestas. Eu ficaria na saleta e elas seriam instaladas na sala, que teria a asneira adaptada ao formato de besteira, adequado ao porte dos bichos.
De novo minha iniciativa foi mal compreendida pelo síndico, que vetou a entrada da manjedoura, sacos de capim e a vinda de um ferreiro vez em quando. Diacho. Será que daria para construir no quarto da empregada um minúsculo sistema hospitalar, para cuidar de mulas com tendões inflamados? Eu não sou dos que não se importam que a mula manque. Gritaria geral da vizinhança. Recuei, estrategicamente.
Resolvi que devia diversificar. Em vez de muares, podia tratar bem de equinos, que são mais queridos. Numa área livre da cobertura do prédio, eu faria um telhado para tirar os cavalos da chuva. Inventivo e entusiasmado, ainda imaginei uma calha para coletar os aguaceiros e assim ter uma cisterna sempre cheia para lavar a égua. Mas aí os condôminos todos se opuseram, decerto preocupados com infiltrações. Me deram um ultimato: ou eu parava com asneiras e besteiras ou me expulsavam dali. Com essa última rejeição de um projeto de carinho e cuidados com animais, parei pra refletir.
Pensei na piscina pouco utilizada do playground. Bastava uma rampa de acesso e seria tão mais prático dar com os burros nágua. Será que dessa vez topariam? Afinal, não seria nenhuma asneira ou besteira. Apenas uma burrada.
Adriano Sátiro, aquele rapaz de óculos, em espetáculo com os grandesíssimos (da esquerda para a direita) Arrigo Barnabé, Oswaldo Rios e Carlos Careqa parece que sumiu. Os outros eu sei. E tu, Adriano, onde andarás? Ainda na paradisíaca Penha, no litoral catarinense, a curtir o filhão na areia da praia e a debulhar seus mil instrumentos? Quem souber, recados para este blog.
Olha aí a carteirinha de sócio do Coritiba do meu pai, já sabendo que eu seria coxa-branca sete anos antes do meu nascimento. O queixo dele não era torto não. É a foto que está bichada.
quinta-feira, outubro 08, 2009
Léia Leite e Marcos Prado na exposição Solda vê Deus, foto dos arquivos implacáveis de Júlio Garrido.
Curiosidade: o título do poema do Sérgio Viralobos é a citação da letra de uma canção do Beto Trindade (não lembro se com ou sem parceiros).Ou seria uma pichação? Veja nos comentários a discussão sobre as origens da misteriosa frase-título. O Júlio Garrido fez a grande gentileza de mandar a foto histórica acima, única a documentar uma pichação da família ButyKing. À direita, o Baxo. Ao lado dele, o próprio Júlio Garrido.
Não conheci pessoalmente o Rodrigo de Souza Leão. Apenas li o seu interessantíssimo Todos os cachorros são azuis. Soube pelo blog do seu xará Rodrigo Garcia Lopes que ele morreu de ataque cardíaco, no Rio de Janeiro, aos 45 anos. Até mais, Rodrigo e obrigado pelo que ficou.
AQUI 2.
Sou maldito de boutique Mendiguei no meu quarto Na sujeira das cinzas Entre latas de cerveja
Fiz de toda a prisão Um poema feito pele À moda das cicatrizes Que eu deixei em mamãe
Amo toda a profundidade Mesmo aquelas abissais E desconfio de mim tanto Que paro o poema aqui
Rodrigão, parceiraço das alturas, provando que é bem mais alto que a minha filha Natália.O poema Wo is WxO foi musicado e levado aos hereges pela santa banda Os Missionários.
Deus me deu este poder:
vida ou morte aos ateus.
A esses, cambada sem alma,
a volta compulsória, via Átila,
ao estrume, huna matéria
em que acreditam.
A que servem joelhos de não rezar?
Mãos e braços não são
senão para dar graças?
Que sentido tem o olho
sob a ótica da descrença?
O flagelo de Deus, de tanto bater
o duro coração, pura carne, há de amolecer
ao infiel, futuro churrasco,
no dente daquele que sobreviver
à diferença entre o dogma e o fazer:
- abstração teórica de horas de lazer!
(Rodrigo Barros Homem d’El-Rei, Roberto Prado, Antonio Thadeu Wojciechowski)
Cantando para o meu anjo da guarda dormir, alguém que muito me adora soprou: do amor deve sobrar só o perfume e que arda em brasa toda a obra pra que dela brilhe mais o lume.
Dormindo para o meu anjo da guarda falar, vejo na leve pétala que me leva a língua de fogo que nos devora. A primavera tem aroma de uma Eva que essa vida, brisa, não carrega.
A lenha chora, mas eleva labaredas. Soa alto o salmo doído que o calor amansou. Sobem cheiros, flores das almas delicadas. - Delicadas feito esse anjo da guarda que alguém que muito me ama sonhou.
Diversos figurões da república pararam de enrolar e hoje se declaram favoráveis à liberação (ou como eles preferem: descriminalização) da maconha.
Mesmo não sendo gourmet da tal planta, abstraio a dor de concordar com políticos e lhes dou razão. Proibir mato é o fim da picada.
Pois bem. Só semana passada apareceram o muito louco ex-presidente FHC (aliás, curiosamente, seu nome é quase THC, o mesmo que designa o princípio ativo da chibaba - tetrahidocanabinol), o cabeça-feita ex-ministro da justiça, Márcio Tomaz Bastos e o fissurado ministro do meio ambiente, Carlos Minc dizendo que, por eles, o povão poderia fumar despreocupadamente a sua folha de chuchu com pachioli na varanda.
Mas, na verdade, não é de filigranas jurídicas e polêmicas bestas que eu quero falar. É que lembrei da obra-prima que uns amigos meus escreveram, musicaram e ainda devem cantar por aí. Coisas assim precisam ser acesas para não virar fumaça.
Não lembro o título da bagaça, no original que eu tenho está faltando este pedaço. Talvez tenham usado para enrolar um. Vai saber.
PS.: Opa! O Trindade, lá do Reino Unido, já me lembrou do título da bagaça.
Caterva maldita
eu sou chegado numa maconha
eu gosto mesmo é de um bagulho bom
minha cabeça fica bambalhona
eu fumo puro e com manjericão
lá na jamaica chamam de ganja
dançam fumando e dizendo jah
rastafaris cabeças de nego
vou dando bola e dizendo oba
lá no pernambuco tem o cabrobró
a tal sensemillavem do cafundó
rabo de raposa é muito mió
um troço louco lá do marrocos
vem em bolinha e tem que dechavar
baixaram todos os santos da bahia
quando a liamba começou rodar
ai que saudade eu tenho da tailândia
que veio em lata no solano star
índia, somália, trinidad, polônia
acho que fumo em qualquer lugar
lá no pernambuco tem o cabrobró
a tal sensemillavem do cafundó
rabo de raposa é muito mió
(Rodrigo Barros, Beto Trindade, Thadeu Wojciechowski e Walmor Góes)
Sob o impacto dos últimos acontecimentos, lembrei deste poema feito por um trio da pesada e que depois foi magistralmente musicado pelo Beto Trindade. Vejam só:
uma enorme pedra rolou sobre nossa casa ela era de palha como num conto de fada
moído cada utensílio restou juntar os trapos contar o que sobrou de filho e chorar pelos barracos
(Marcos Prado, Antonio Thadeu Wojciechowski e Rodrigo Barros Homem Del Rei)
Neste mundo, o que é bom a gente tem que garimpar, meter a unha e não deixar escapar. Aqui vão textos escolhidos a dedo de três escritores de mão cheia. O Mário Bortolotto está em São Paulo, a Léia Leite no Rio de Janeiro e o Luiz Antônio Fidalgo eu não sei (onde você está, Fidalgo?)
1.
Trecho de Soda Pop, de Mário Bortolotto
Ninguém anda com ele e o cara detesta ficar sozinho. Deus, esse cara lê Olavo Bilac em voz alta e faz performances sob a luz do poste. Deus, eu ando aplaudindo meu único amigo. Deus, acho que eu sou menos que um escriturário, estou me sentindo menos que um escriturário. Ando falando com uma lata de biscoitos ando bebendo muito pra achar engraçado o lero com a lata de biscoitos. Deus, os biscoitos são tão apetitosos, eu choro quando penso em comê-los. Deus, eu não sei mais nenhuma oração mas eu rezo muito. Olha, eu vou embora vou enforcar a estátua do Aleijadinho vou arquitetar um plano de conseqüências terríveis para os mineiros cantores só vou livrar a cara dos que já morreram. Só bêbado tem saco pra ler o que escrevo. Deus, eu procurei uma clínica psiquiátrica e minha irmã estava na recepção me sorrindo e pedindo dados pessoais. Deus, eu preciso me desintoxicar eu toco a campainha e ela nunca atende eu vou na casa dela e ela deixa bilhetes com a mãe. As garçonetes não anotam meu pedido. Os mendigos não me pedem esmola. Até a acne está ameaçando me abandonar. Deus, você sabe como fazer as coisas.
2.
Conto de Dalton Fêmea, de Léia Leite
De uma hora pra outra, o rei da batucada.
Para ele o novo Francisco Alves.
Batucava nas panelas, bacias, baldes, tudo, até a tampa da privada, credo, ele chamava de surdo.
Sorte que sem cigarro e copo ele não fica. Com copo e cigarro, nada de samba batucado, porque começava a cantar. Um hipopótamo dando o último suspiro.
Que de dormir os esfomeadinhos gêmeos?
Agora ele, dou graças a Deus, um silêncio de morte.
É hoje.
Ele não vivia cantando que era para mulata sapatear no seu caixão?
3.
Aniversário, conto de Luiz Antônio Fidalgo
Pronto! Agora ele já tinha dez anos de idade. Já podia brincar com o grupo dos primos mais velhos, como sempre sonhara. – Seja bem-vindo, primo, disseram, colocando-lhe uma venda nos olhos e prevenindo de que só tirasse a tal venda, após ter contado até cem. Então, o levaram assim, cego, pra algum canto em alguma parte daquela casa enorme. – Noventa e dois... ele foi contando ... noventa e sete... enquanto o som da voz dos primos sumia por completo... cem! - Tirou a venda dos olhos. Surpresa! Tudo continuou escuro. Ele ficou ali, aguardando o que viria a seguir. Viu então, um pequeno ponto luminoso que foi crescendo, crescendo e iluminando todo o ambiente. Então ele pôde ver o que era: – Fogo, gritou, e percebeu que nas paredes da peça onde estava não havia interruptores de luz, portas ou janelas.