quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Estou cansado, onde é meu lar?

Eu estava aqui pensando com meus botões, mas, como a roupa que uso não tem botão algum, acabei lembrando do Arnaldo Baptista.

Um cara que, desde antes dos Mutantes até depois de hoje, deixa bom tudo o que toca - há mais de 40 anos. Não que precisasse tanto o cara que fez um verso como “meu trem/ você vai demorar/ estou cansado/ onde é meu lar?”.


Daí, lembrei que o Sérgio e o Thadeu fizeram um poema só com frases desentranhadas de entrevistas do Arnaldo:

o a e o z

o coração é a parte mais importante pra mim

pulou na frente quando era pra eu pular

no futuro haverá um museu cheio de novidades:

amplificadores valvulados, guitarras gibson e energia solar


explicações que minha profundidade tem a dar:

no transístor a distorção é sibilante!

meu sonho pessoal amplificado em milhões de watts

o equipamento vai me deixar transmitir isso?


(Sérgio Viralobos e Thadeu Wojciechowski)

Vítima de um erro médico, o Arnaldo Baptista caiu da janela do hospital e, durante anos, essa mesma medicina afirmou que o cara estava condenado a ser um vegetal. Ele e sua mulher não acreditaram no que estavam ouvindo. E, em alguns anos, voltou a andar, a falar, a tocar, a escrever, a compor.

Lembro também que, quando voltou à ativa nos palcos, diziam que o Arnaldo Baptista estava maluco e não levaram à sério sua insistência de que era preciso voltar a usar os amplificadores valvulados em shows profissionais. Hoje a ciência sabe que ele tinha razão. No auge dos Mutantes, era um modelo, um ícone, um símbolo e imagino que isso não deve ter sido fácil para um ser com sua estranha sensibilidade. O bando é cruel e, depois de um tempo, acha que sabe como você deve ser melhor do que você saberia.

Pois foi então emendei outra recordação, uma obra prima da mesma dupla de poetas sobre esse assunto:

abraço aos amigos ursos

em meio à fumaça do meu sono

um rosto que nunca vi mais fino

chegando, sorrindo e me nomeando:

- ó, chefe dos escoteiros junkies!

não, não era um filme de david cronenberg

era um sonho em curta-metragem sobre meus amigos

eu por todos e todos cada um por si

perdido e me perdendo pelos outros

como boi de piranha da manada nihilista

atravessando velha que não queria ser atravessada

só acordei com a fisgada na carteira

meu melhor amigo com a arma na minha cara

foi então que a lâmpada acendeu-me uma idéia:

- declaro aberta a temporada de caça !

(Sérgio Viralobos e Thadeu Wojciechowski)

E foi aí que me deu saudades do Sérgio Viralobos, hoje em SP, um cara que, como o Arnaldo Baptista, deixa o ar da sua genialidade em qualquer texto onde ponha a mão.


Me toquei também que, com tantas parcerias cruzadas entre eu, ele, o Marcos e o Thadeu, só em uma se juntaram os quatro mosqueteiros:

chão de brasas

comido o pastel de brisa

sonho pela barriga

o vídeo da última comida

não há piquenique sem formiga


salva de sal grosso

nas partes do elefante

acordo para o almoço:

espetinho sem carne


(Marcos Prado, Roberto Prado, Sérgio Viralobos e Thadeu Wojciechowski)


Mas é claro que não é filho único, pois disso tudo, dessa vida, desse esforço coletivo, dessa fome, dessa - como disse o Sérgio - "suruba mental com todo o respeito" surgiu um certo ar, uma certa alegria, um certo bom humor negro, uma poética da criação que acaba fazendo parte de tudo que todos escrevem, seja com quem for. Será isso mesmo? Meus botões preferiram guardar a boca pra comer farinha. E vocês, o que acham?

5 comentários:

polacodabarreirinha disse...

Eu sabia que quando vc começasse a coisa ia esquentar pra valer. O Arnaldo Baptista é tudo isso e mais um pouco. Boa lembrança, Beco, bom texto. Assim eu vou querer vir aqui todos os dias.

Thadeu

Roberto Prado disse...

É isso aí, Thadeuzão. E não dá outra. Sempre que puder eu vou fazer essas sinapses, pois as coisas da vida e da arte andam meio isoladas. Ligar uma coisa com outra é preciso. Ou então a gente acaba ficando igual a um parente meu que falou para o padre, que reclamava da sua ausência nas missas: - Mas seu padre, eu sei até fazer o sinal da cruz... só não sei espalhar na cara!

Roberto Prado disse...

O que o próprio contou foi que estava internado, agitadídimo. Se era pela Madame Lee, ele não confirmou. Aí veio o erro: a enfermeira aplicou nele um medicamento agitante no lugar do calmante. Daí o cara apagou e nem soube que estava num prédio, quanto mais que tinha pulado de um. Ele insistiu tanto nisso, quando "acordou" (a lembrança só voltou anos depois) negando que um dia tivesse tentado o suicídio, que foram atrás verificar e acharam, nas anotações do hospital, a confusão química. Mas, em geral, eu, particularmente, não acredito que alguém se mate por amar demais outra pessoa. Acho que aí é o caso de amar demais a si mesmo a ponto de não suportar uma frustração ou não ter paciência para o tempo alheio. Sabe Deus.

Abração, Careqa.

Anônimo disse...

Esse é o cara que diz coisa com coisa. Parabéns.

Roberto Prado disse...

Valeu, Raimundo. Gostei do seu blog, a poesia em estado de eterna pauderescência. Volte sempre. Grande abraço!